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Lighthouse: Mitologia, Literatura e quarentena

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Lighthouse Mitologia, Literatura e quarentena

Lighthouse (O Farol) trás diversas referências da mitologia e literatura, mas foi necessário viver na quarentena para verdadeiramente apreciar essa obra.

Como a expectativa pode acabar com um filme

Minha história com esse filme é longa, data desde as primeiras notícias sobre o começo de sua produção no começo de 2018. Fora divulgado que Willian Defoe e Robert Pattinson iriam encarar os papéis principais, mas foi na ambientação da história que eu fui imediatamente fisgado.

Dois cuidadores de um farol, isolados numa pequena ilha na região da Nova Inglaterra do século XIX, me passaram a ideia clara que uma história lovecraftiana estava prestes a ser desenvolvida. O mistério sobre o verdadeiro enredo só alimentava minha esperança.

A de dois personagens lentamente enlouquecendo no isolamento da ilha, com algumas referências visuais nos trailers à tentáculos e seres aquáticos, elementos clássicos da weird fiction, colocava não apenas este escritor, numa trilha que direcionava à Lovecraft. E foi por isso que esperei durante todo o filme.

Uma reviravolta que nunca veio

A cada cena que passava e a trama se desenvolvia, contava os minutos até que uma criatura de horror cósmico surgiria e consumiria lentamente a sanidade dos personagens, fisicamente isolados do resto do mundo. Porém essa reviravolta nunca chegou, me deixando confuso com o destino final do filme, e sobre tudo aquilo que o longa representou.

Talvez a frustração tenha sido alimentada em consequência do amadorismo no lançamento atrasado do longa no Brasil, lançado três meses após o lançamento oficial americano. Além de uma privilegiada exibição de poucos lugares num único festival com lugares reservados.

Na época, cheguei até a discutir com amigos que tinham adorado o filme. além de fazer a boa e velha procissão entre diversas críticas e análises sobre o filme, em busca de compreender o que tanto as pessoas enxergavam na obra. Com o tempo acabei deixando o filme de lado e esquecendo de sua história.

O tempo ao tempo

Foi após um tempo, acreditem, ao entrar num grupo de shitposting chamado “Robert Eggers Seagullposting” onde membros recriavam em memes, frases imortalizadas no longa, que pela primeira vez pensei em dar uma segunda chance ao filme. Mas algo havia mudado.

Agora, já estávamos em meio a pandemia de covid-19 que tomou o mundo. E foi no primeiro mês, período mais rigoroso onde meu isolamento foi quase completo, com a mente completamente esgotada pelo distanciamento social, que pude ter a visão que o filme merecia.

Claro, os diálogos penetrantes, brilhantemente executados por Willem Dafoe, já haviam me conquistado na primeira assistida. Robert Pattinson convence e muito como ator, entregando a mente perturbada de um jovem que buscou uma oportunidade fácil de emprego e acabou sendo tragado num precipício psicológico de isolamento com um chefe abusivo.

Uma crise entre duas potências

O filme deixa aberto que talvez seja Winslow o maluco da história e Thomas apenas esteja reagindo a insubordinação do garoto. Mas, ao meu ver, o enredo se encaixa melhor numa narrativa de gaslight onde Thomas manipule o garoto para assegurar sua posição de poder. O que também encaixa no contexto de luz (gaslight = luz a gás) do filme.

Aliás, um dos temas trabalhado à exaustão no longa é justamente as relações de poder, não só de uma perspectiva marxista de empregado e patrão, mas também um asseguramento de masculinidade e domínio, inclusive passando por conotações sexuais (sim, vou tomar esse caminho). 

Uma reviravolta de poder na história é ilustrada com Winslow sendo chamado o filme inteiro pejorativamente de cachorro. Esse embate evolui numa cena onde ambos discutem (que antecede o brilhante monólogo/maldição de Thomas) em que a repetição da palavra “what” se assemelha ao latido repetido de dois cachorros brigando. Terminando com Winslow forçando Thomas a caminhar de quatro e latir como um cão velho (woof, woof).

Uma homenagem às artes

A tensão psicológica do embate de forças dos dois personagens é de fato indiscutível, mas um subtexto mais sexual pode ser visto em poucas passagens, como quando eles quase se beijam após dançarem lentamente, e no delírio de Winslow ao imaginar Thomas projetando a luz de sua boca em sua face com seu corpo desnudado.

Essa cena em especial é uma referência ao quadro Hypnosis (1904) de Sascha Schneider, pintor que teve de fugir da Alemanha devido a sua homossexualidade ser considerado crime. Seu quadro é recheado de elementos homoafetivos.

Uma homenagem à literatura americana

A linguagem quase poética, principalmente encontrada nas palavras de Thomas Wake, vem de uma extensa pesquisa de Robert Eggers sobre a literatura anglo-americana, como o clássico Moby Dick de Herman Melville (clássico americano de literatura náutica) e Paradise Lost de John Milton, mas é em Sarah Orne Jewett que vemos a principal referência literária.

Sarah foi uma escritora americana do século XIX que viveu toda sua vida em Maine, na região da Nova Inglaterra. Como parte do movimento regionalista literário, Sarah transcrevia em sua prosa e poesia, a forma exata como os populares de sua época e região falavam. Trazendo para o filme, essa autenticidade narrativa nas palavras de Thomas Wake.

Uma homenagem à mitologia

Talvez um dos elementos mais óbvios e por isso, nem tão surpreendentes, é todo o subtexto mitológico do filme. Além das claras referências a Netuno (deus dos mares romano), Tritão (filho de Poseidon e pai da Ariel) e a representação de uma vagina de sereia que, como mamífero aquático, deveria se assemelhar ao de um golfinho fêmea (como disse o diretor, não eu).

O filme apresenta uma distorcida releitura de Prometeu, onde o fogo dos deuses é representado pela luz do farol. Além de emprestar uma visão corrompida de sua resolução. Onde vemos corvos bicando as entranhas de um derrotado e enlouquecido Winslow, que não retornará a vida assim como o herói trágico grego.

O assassinato de espectativas e a importância do momento

Toda essa complexa leitura sobre o filme foi completamente perdida por mim em uma primeira assistida. Unicamente pela expectativa que eu tão erroneamente projetei sobre o longa. Esquecendo da regra de ouro da arte que a obra deve ser julgada pelo que ela é, não pelo que esperamos dela.

Mas sem dúvida, nos primeiros tempos de pandemia, onde nos vemos isolados socialmente e convivendo com a mesma pessoa durante tanto tempo. Podemos ver como os pequenos conflitos escalam e a nossa própria noção de realidade é questionada. E por isso, Lighthouse é o perfeito filme (ou não) para ser reassistido nessa quarentena.

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