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Gaslight: O filme que cunhou o termo feminista

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Gaslight O filme que cunhou o termo feminista

A palavra “gaslight” ganhou força nas redes sociais e no discurso feminista como a definição de uma técnica de relacionamento abusivo. Onde o parceiro que comete agressão psicológica começa a tratar a outra pessoa do relacionamento como se ela tivesse enlouquecido. Às vezes até criando situações com memórias falsas para reforçar a manipulação.

Tal atitude tende a minar a força de vontade da vítima, fazendo com que ela fique codependente intelectualmente de seu companheiro, se afastando socialmente de outras pessoas e perdendo a confiança em si mesma.

Origem do termo

Por ser uma palavra de origem inglesa, a tradução literal de seu termo pode conduzir as pessoas ao engano. “Gaslight” traduzido literalmente do inglês, significa “luz a gás”. E não foram poucas explicações mirabolantes que vi tentando fundamentar o termo baseado na sombra que a luz faz, na deformidade de sua fraca iluminação, ou qualquer outro exercício mental para justificar sua tradução literal.

Acontece que o termo na verdade provém de uma peça teatral chamada Gas Light de 1939. Peça essa que gerou duas adaptações cinematográficas chamadas Gaslight, uma britânica em 1940 e uma americana em 1944. E é sobre essa segunda adaptação em 1944 que irei trabalhar.

O enredo de Gaslight

Ingrid Bergman, atriz sueca consagrada que estrelou em filmes de peso como Casablanca, Por quem os Sinos Dobram, Interlúdio, Assassinato no Expresso Oriente, e entre outros, interpreta a jovem Paula Alquist Anton, que presencia com apenas 14 anos a morte de Alice Alquist, sua tia e adulta responsável pela criança após a morte de sua mãe. Alice fora assassinada por um ladrão de jóias que foge sem conseguir levar o que desejava.

De forma a lidar com a experiência traumática, a jovem é enviada à Itália para que aprenda a se tornar uma cantora de ópera (tal qual fora sua tia). Já em sua vida adulta, conhece um galanteador chamado Gregory Anton, que insiste em se casar com a jovem e ambos se mudarem para Londres, onde sua finada tia morava.

Com relutância, Paula aceita o pedido mesmo sabendo que sua vida toda estava na Itália, onde havia cultivado uma bela vida social. Sendo que em Londres ela não conhecia ninguém. As memórias do crime que presenciou quando jovem também atormentavam a memória da garota, fazendo com que Gregory sugerisse que todos os móveis de sua tia sejam alocados no sótão, enquanto ela procurava lidar com esses sentimentos.

Nem tudo são flores…

Porém a situação dentro da mansão logo começa a ficar tensa e pequenos problemas escalam para exaustivas brigas onde Greg age com violência energética. Mas que são recontadas de forma a entender que tudo não passou de um exagero pelos nervos sensíveis de Paula.

Pequenos objetos pertencentes a Paula começam a desaparecer misteriosamente. Objetos da mansão aparecem e desaparecem em outros lugares. Seu marido reclama do sumiço de seu relógio, unicamente para aparecer na bolsa de Paula. Que devido a desconfiança na própria sanidade acaba fazendo escândalo numa festa que o casal fora convidado. A lenta transição a loucura de Paula é usado de justificativa para que Greg a mantenha cada vez mais afastada da sociedade, trancada em sua própria casa.

E claro, o acontecimento que dá nome à peça e suas duas adaptações: Paula diz ter certeza de que as luzes da casa (alimentadas a gás) parecem enfraquecer toda vez que Gregory não está em casa.

ALERTA DE SPOILER

A partir daqui, irei detalhar um spoiler ENORME do filme. Se você leu até aqui e se interessou pelo filme, recomendo que vá assistir. É uma obra prima do cinema dos anos 40, com atuações impecáveis. Se você já assistiu o filme ou não se importa com spoilers, pode seguir a baixo na conclusão do texto.

Gaslight é uma obra que reúne e mistura com primazia os elementos dos dramas românticos e do cinema noir da época. Como espectadores, somos conduzidos a acreditar que realmente Laura está perdendo a sua sanidade devido aos acontecimentos de seu passado e o peso emocional de viver na casa onde presenciou o assassinato de sua guardiã.

Porém tudo não passara de um grande plano de Greg para reaver as jóias que ele tentou roubar, quando ele mesmo assassinou Alice. Com os móveis trancados no sótão, ele subia escondido tentando encontrá-los em algum dos antigos móveis. E toda vez que ele ligava a luz de gás do cômodo, o resto da casa tinha suas luzes diminuídas devido a falta de fluxo de gás no encanamento.

Uma estratégia nefasta

Vendo como Laura perdia o controle sobre si mesma, Greg buscou manipular a garota para que ela fosse internalizada num manicômio para que ele assumisse o controle jurídico sobre a garota e suas posses, facilitando o acesso a sua herança.

Com isso, o filme dispara diretamente contra a internação compulsória de pessoas que sofrem de transtorno mental. Amplamente praticada na época, tanto nos EUA como no Brasil, e que levaria a episódios trágicos como o Hospital Colônia de Barbacena (melhor retratado no documentário Holocausto Brasileiro) sendo hoje, amplamente criticada pelos especialistas na área de saúde.

Não só isso, mas a história alerta diretamente para a manipulação psicológica dentro de um relacionamento. Bem como o sentimento de pertencimento, quando o parceiro exerce o controle emocional sobre seu cônjugue. Fazendo-o refém de suas próprias vontades e, mais importante, isolando a pessoa para que ela perca seu caráter social.

Era de ouro de Hollywood

O filme não conseguiria entregar essa narrativa sem brilhantes técnicas cinematográficas. Na maior parte do filme somos enganados por uma cinematografia emprestada de diversos filmes românticos da época.

Porém, nos primeiros minutos do longa, e conforme a pretensa insanidade de Laura é evidenciada, até mesmo escalando até o momento em que a trama é revelada.

Film noir

Vemos tonalidades narrativas de um preciso filme de suspense e terror psicológico com uma densa influência de film noir. Lembrando bastante o filme Cat People, lançado dois anos antes (e que também renderia um artigo só dele).

Haveria outro filme em preto e branco que iria navegar pelas mesmas linhas narrativas. Nightmare também usa da manipulação psicológica pelo gaslighting para perturbar sua protagonista. O filme seria lançado pela Hammer Studios duas décadas depois.

Desvendado o mistério, vemos Paula desfilar um brilhante monólogo em frente a seu abusador que, mesmo rendido, se mantém na defensiva buscando um jeito de sair ileso pelos seus crimes. A entrega de diálogo pela atriz é tão potente e energizante que premiou a consagrada Ingrid Bergman por seu primeiro oscar.

Uma brilhante conclusão

Uma vez levado pela polícia, vemos Paula na varanda de sua antiga casa, olhando desolada para um céu nublado e desabafando com Brian Cameron, detetive que ajudou a desvendar o caso com Paula. Num diálogo tão tocante que irei transcrevê-lo traduzido no final do texto:

— Esta será uma longa noite.
— Mas irá acabar. As nuvens começaram a clarear. De manhã, quando o sol nasce, às vezes é difícil acreditar que sequer houve uma noite. Você irá descobrir isso também.

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