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Cobra Kai, muito além da nostalgia

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Cobra Kai, muito além da nostalgia

Cobra Kai não é só nostalgia por um filme clássico. Diferente dos diversos remakes e outros produtos preguiçosos que se prendem aos anos 80, a série soube desenvolver seu universo e até mesmo enriquecer a narrativa do filme original.

Criando uma série baseada em piada de sitcom da década passada

A primeira vista, qualquer fã de How I Met Your Mother mais atento irá se lembrar dessa curiosidade. Tudo começou lá na quarta temporada em uma piada desenvolvida para mostrar como Barney Stinson admira vilões nos filmes que assiste. O que diria muito sobre sua própria personalidade egoísta e destrutiva.

Assim como os exemplos listados de vilões que Barney admirava como se fossem heróis, é em Karatê Kid que temos um argumento sólido. Enquadrado de um ponto de vista bem específico, vemos um Daniel-San arrogante e esquentado que se infiltra na vida social de seu declarado arquirrival em todos os meios sociais que o mesmo se destacava.

Vemos Daniel tentando seduzir a garota que estava recentemente brigada com Johnny. Aproveitando todas as oportunidades de passivo-agressividade para encorajar o rapaz a briga. Uma vez perdido, uma briga, o garoto tenta entrar na escola de karatê onde o próprio Johnny é a estrela máxima. A história parece mesmo tomar outro rumo vista pelo ponto de vista de seu antagonista.

A criação de um bom antagonista

Porém esse caso geralmente se traduz literalmente numa boa construção de antagonista. Em alguns arquétipos de história, o vilão é construído como um espelho do protagonista. Uma amostra do que o herói pode se tornar, caso sucumba a vontade de poder, ou deixe sua moralidade de lado.

Para acumular a construção de personalidade de Johnny, ainda é necessário destacar que ele é o antagonista da história, mas não o vilão. Esse papel fica destacado ao seu sensei, John Kreese. Responsável por antagonizar o papel de mentor do herói, desempenhado de forma quase estereotipada por Senhor Miyagi.

O tratamento cruel e lavagem cerebral de Kreese sobre Johnny apenas o fortalece como personagem. Dando uma carga emocional ainda maior ao seu papel de antagonista (ou herói trágico, na reinterpretação de Barney). Conceito muito bem explorado na série.

Nostalgia: Como não se envergonhar do material fonte

Mas é claro que apenas uma boa fanfic não daria conta de segurar a narrativa de uma série spin-off. Diferente de outras adaptações/remakes/reboots que quase se envergonham do material original que as criou. Cobra Kai faz questão de nos lembrar quais são suas origens, tudo temperado pesadamente no doce sabor da nostalgia.

Inclusive, algumas cenas do passado são inéditas. Pois foram cortadas ña edição do filme antes do lançamento. Um recurso recorrente da série é mostrar antigos personagens do filme em situações corriqueiras da série, fazendo uma ponte com cenas originais do filme para nos ajudar a recordar de seus momentos. Right in the feels…

A melhor parte disso é que eu, pessoalmente, nunca fui muito fã de Karatê Kid. Mas ainda sim não posso deixar de mergulhar na estrada da nostalgia. Porém o passado não está lá apenas para ser relembrado, o que me leva ao próximo ponto. 

“It’s like poetry, they rhyme”

Uma vez questionado sobre os trechos narrativos que parecem se repetir na trilogia original de Star Wars e na trilogia “prequel” de 99-05, ele se justificou com “é como poesia, eles rimam. Ainda que o conceito seja porcamente utilizado em Star Wars (que na verdade é uma merda), esse conceito é executado brilhantemente na série.

Na festa de halloween da escola, temos agora o aluno de Johnny com sua fantasia de esqueleto sendo agredido por bullies da escola. Desta vez, sem seu sensei para resgatá-lo. O campeonato final da primeira temporada traz diversos paralelos com o campeonato do final de Karatê Kid, mas com alguns pontos destoantes que fazem a diferença (sem spoilers).

Temos um Daniel Lerusso (que acreditem, tem mais idade que Miyagi tinha no filme original) tentando passar adiante os ensinamentos de seu sensei, porém sem a mesma paciência e prudência de seu mentor. Esses detalhes se repetem durante toda a série, reimaginando acontecimentos do passado sob uma nova perspectiva, ressignificando todos seus momentos. 

Foreshadowing

Foreshadow (presságio em tradução literal) é um dispositivo narrativo onde um elemento chave futuro na narrativa, é apresentado antes na forma de um diálogo ou objeto em cena, sem a mesma importância que terá futuramente. Esse tipo de recurso narrativo enriquece a história e dá dicas para o leitor/espectador decifrar a cena antes que ela ocorra, recompensando a atenção

Além disso, o recurso mostra que soluções para os problemas dos personagens não caíram do céu, mas sim que sempre estiveram ali. Tão porcamente usada nas apressadas e confusas narrativas atuais, esse recurso é brilhantemente executado em Cobra Kai.

Um exemplo perfeito dessa execução é na montagem do jardim de Miyagi-Do, quando Robby se atrapalha em colocar os vasos sobre o disco de madeira no lago. Daniel o lembra que é necessário equilíbrio perfeito entre os lados. Equilíbrio relembrado durante a dificuldade de aprendizado do kata em dupla de seus dois alunos. Fazendo com que Daniel os colocassem pra treinar em cima do disco.

Um embate de gerações

Um elemento claro na narrativa do filme é a estereotipação das diferentes gerações que cresceram após o lançamento do filme. Como explicar cada uma geraria um parágrafo em si, deixo abaixo uma pequena tabela para facilitar o entendimento.

Geração X: Nascidos entre 1965 e 1981 –  Cresceram nas décadas de 80 e 90.
Millenials: Nascidos entre 1982 e 1994 – Cresceram nas décadas de 90 e 00.
Geração Z: Nascidos entre 1995 e 2010. Cresceram nas décadas de 00 e 10.

Nesse sentido como filme criado em 1984, seu público era completamente voltado para a gen X e millenials mais velhos. Sabendo que este mesmo público retornaria para um spinoff feito 30 anos depois, a tentação de parodiar as gerações posteriores seria inevitável.

O filho mais novo de Daniel é o retrato perfeito de uma geração Z alienada da realidade e plugada na internet todo o tempo. A segunda temporada apresenta Arraia, um esteriótipo millenial já em fase adulta preso tanto aos anos 80 quando a adolescência de uma geração posterior.

Gender o que? Isso é algum tipo de trote?

Frequentemente o dojô de Cobra Kai é confrontado por políticas modernas de gênero e bullying. Seria completamente fora do personagem mostrar um Johnny desconstruído e preocupado com o bullying que seus alunos sofrem. Porém manter um protagonista que defenda bully ou discriminação de gênero seria um tiro no pé da série.

Nesse sentido, a série contornou esse problema com um brilhante desenvolvimento de personagem. Foram os problemas financeiros e falta de alunos que incentivou a aceitação de outros gêneros no dojô. Foi a agressividade preventiva do lema de Cobra Kai que ofereceu uma defesa concreta contra o bullying.

Foi na repaginada de Hawk que vemos um garoto tímido e complexado com sua aparência, se tornar numa pessoa de atitude e confiante (tudo muito bem executado pelo ator mirim). Porém, seu desenvolvimento logo flerta com uma personalidade corrosiva que pode acabar desenvolvendo no personagem.

Cobra Kai não é um Karatê Kid ao inverso

Apesar de partir da premissa da teoria de fã e mostrar Johnny como protagonista, além de todos os pontos que levantei sobre “rimar” com cenas passadas. Cobra Kai não é meramente um espelho invertido do filme Karatê Kid. 

A série é sobre Johnny lidar com seu passado e conseguir tirar o melhor disso, bem como Daniel reconhecer os problemas que ele mesmo causou. Nenhum dos dois é realmente o vilão da história, a não ser é claro, aquele que era originalmente o vilão esse tempo todo.

Com a volta de Kreese, vemos quem originalmente era o vilão da história e como ele afeta negativamente todos ao redor, seja através de uma penumbra seja presencialmente. Isso sem mencionar o que acontece no final da segunda temporada, por respeito aos spoilers.

Droga, talvez tudo seja mesmo uma grande poesia.

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