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Midnight Gospel e a inevitabilidade da morte

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Midnight Gospel e a inevitabilidade da morte

Quando vi o burburinho inicial sobre essa nova “animação para adultos” na Netflix, não me alonguei muito e decidi assistir. Tomei a decisão de nada pesquisar sobre o desenho e me limitar ao máximo sobre o que meus amigos comentavam sobre ele. Após um primeiro episódio bastante caótico, fiquei ponderando um pouco sobre o que acabara de ver. Levaria um tempo até entender os temas complexos que Midnight Gospel abordava, como misticismo, meditação e a inevitabilidade da morte.

Taste of the King

Assistir o primeiro episódio sem fazer ideia do que está por vir foi uma experiência um tanto excêntrica. A animação psicodélica logo chama a atenção e indubitavelmente faz você lembrar de Hora da Aventura. Não à toa, visto que a animação é chefiada por Pendleton Ward, um dos cabeças da série.

Os diálogos, logo percebi, pareciam completamente alheios ao caos que tomava conta fundo. A história gira em torno de Clancy, que cria um avatar para ser enviado num mundo à beira de um apocalipse zumbi. Porém o foco do diálogo era uma entrevista entre o garoto e o presidente daquele mundo sobre liberação e nocividade das drogas, e a guerra de zumbis comendo de fundo.

Conversa estranha com gente esquisita

No começo parecia apenas uma versão falada do trope “caras legais não olham para a explosão”. Um toque especial era como as falas às vezes atravessavam umas às outras, ou mesmo se interrompiam. Dando um grande toque de realismo nos diálogos, algo que voltou a ser muito presente em filmes como “Os Meyerowitz” com Adam Sandler, mas que é praticada desde filmes como “The Thing From Another World” de 1951.

Após uma grande reviravolta onde a infestação zumbi na verdade liberta as pessoas de um estado de temor e prisão corpórea, para uma concepção mística de existência desprendida e iluminada. Temas místicos que iriam se tornar recorrentes nos próximos episódios. Unicamente para uma equipe militar distribuir forçosamente uma “cura”, fazendo todos morrerem ao voltarem aos seus corpos mortais e o planeta explodir enquanto Clancy volta para sua realidade.

Um podcast para quem tem distúrbio de atenção

Fora uma boa experiência ter assistido o primeiro episódio sem nenhuma informação extra. De qualquer forma, me sentia alienado do propósito da série, como se estivesse ouvindo uma piada interna de um grupo de amigos que desconheço. Por tanto não resisti e fui procurar do que se tratava a série.

Midnight Gospel é um projeto do já mencionado desenhista Pendleton Ward que, uma vez encantado com as entrevistas místicas e brilhantes do comediante Duncan Trussell em seu podcast chamado Duncan Trussell Family Hour, trazer essa conversa para uma animação que pode ou não, estar relacionada com o diálogo, tudo no intuito de trazer um público maior para os assuntos debatidos na série. Uma vez entendido isso, fica muito mais simples poder admirar a verdadeira genialidade da série.

Uma apologia às drogas?

Logo em seu primeiro episódio, houve um pequeno murmúrio de que era apenas mais uma “série para drogados”, visto a estética psicodélica dos gráficos, a falta de conexão entre ação e diálogo e um discurso que, para um proibitivista das drogas, pode soar apológico ao consumo das mesmas. Mas apenas alguém que não prestou a devida atenção aos diálogos ou mesmo entender o caráter da animação que poderia pensar isso.

A primeira entrevista da série é com Dr Drew Pinsky, médico especializado em vícios e dependência química. Tudo que o doutor fala sobre o consumo de drogas e sua nocividade é pelos olhos de alguém com experiência e propriedade no assunto. O mais irônico é que séries como Bojack Horseman e Ricky and Morty, outras animações direcionadas a adultos, são por diversas vezes apologistas as drogas e pouco se vê alguém comentando sobre isso.

Seria me alongar demais com esse texto, falar individualmente de cada episódio com cada entrevistador. Se quiser uma lista mais detalhada de cada entrevistado e sua especialização, recomendo este site que descreveu com mais precisão sobre cada um deles. Os episódios em média trafegam entre magia, meditação e consciência. Porém gostaria em focar em dois que lidam com algo muito mais problemático para mim, a inevitabilidade da morte.

Falando de morte com uma agente funerária

Em Papo com a morte, a entrevistada Caitlin Doughty é uma blogueira e agente funerária que assume o papel fictício da morte encarnada (Grim Reaper) para falar da indústria da morte americana (pessoas que lucram com o embalsamento, apostando na vaidade norte americana) fazendo um histórico sobre como essa indústria nasceu na necessidade logística de trazer cadáveres nortistas em conflitos no sul dos EUA durante a Guerra Civil.

Mais para o final do episódio, a conversa muda para a aceitação da morte e, pelo menos até onde pude conferir no podcast original, uma conversa exclusivamente criada para o programa, onde o protagonista fala sobre a lenta morte de seu pai, e como foi o processo em lidar com tudo isso.

Conversa de mãe

Já em Como eu nasci, a convidada da vez é Deneen Fendig, mãe real de Duncan Trussell. O episódio começa leve, sobre a relação entre mãe e filho, quando Duncan tem a chance de entrevistar sua própria mãe no programa que ele criou e a conversa é tão irreverente como parece, detalhando sobre detalhes da infância do protagonista e sobre maternidade de forma geral.

Porém mais para frente no episódio, é mencionado que a mãe de Duncan tem câncer de mama em estado avançado, o que desencadeia uma profunda conversa sobre a inevitabilidade da morte, e como ela já ouviu de diferentes médicos que estava prestes com poucos dias de vida. O assunto inevitavelmente é levado sobre a situação de Duncan, e como ele lidaria com a morte de sua mãe, sabendo que poderá acontecer a qualquer momento, o que leva a uma das cenas mais emocionantes da série.

O momento é ainda mais emocionante quando descobrimos que o podcast que originou o episódio foi gravado poucas semanas antes da morte de Deneen Fendig. A conversa muito real desenrolada é de fato uma despedida entre mãe e filho. O que dá ainda mais peso para as palavras finais da mãe no podcast.

“Talvez eu deixe esse mais cedo do que eu esperava, mas o amor não irá a lugar nenhum.

Tenho tanta certeza disso como de qualquer coisa.”

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