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O Vampiro como simbolismo da Peste Negra

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O Vampiro como simbolismo da Peste Negra

Vampiros como simbolismo da Peste Negra, como essa criatura hoje associado a sedução e aristocracia podem ter alguma relação com uma doença tão terrível como a peste bulbônica? Com o fim de esclarecer essa dúvida que escrevo esse artigo.

Vampiros são criaturas que permeiam o imaginário da humanidade por vários séculos, atravessando diversas culturas. Através do tempo, esse tipo de criatura misteriosa foi o reflexo de diversos temores diferentes.

O Vampiro como simbolismo da peste negra

Dessa maneira, talvez inspirado pelo estado de pandemia global, gostaria hoje de ressaltar um elemento em especial, o vampiro como simbolismo da Peste Negra.

Há algo quase palpável de se imaginar numa criatura que vive eternamente se alimentando de nosso sangue. Assim sendo, talvez por isso existam tantas figuras distintas ao redor do mundo. Com o efeito de reviver esse mito em suas mais variadas formas, celebrando e dialogando com suas culturas de formas diferentes.

O Vampiro como morto vivo

No folclore eslavo, a figura do vampiro se assemelha mais ao que hoje atribuímos aos zumbis e mortos vivos. De fato, esse tipo de figuração seria adaptado ao cinema em “Nosferatu”.

Ao tentar se distanciar de Drácula, obra que pretendia originalmente ser adaptada, mas que teve de mudar seu enredo devido aos problemas jurídicos com a família de Bram Stocker.

Na literatura, um dos exemplos onde essa imagem de vampiro como morto vivo renasce também no livro “Eu Sou a Lenda” de Richard Matheson, que fora adaptada para o filme “The Last Man on Earth” (1964) e o filme homônimo com Will Smith em 2007.

Vampirismo mitológico

O vampirismo aparece em diversas mitologias espalhadas pelo mundo, como no sombrio Camazotz, um homem morcego que é basicamente o Batman da mitologia Maya, ou na Lillith da cosmologia judaica, aparecendo também no cristianismo e islamismo.

Lilith seria a primeira mulher antes de Eva, ela é banida do paraíso por não aceitar ficar por baixo nas relações sexuais com Adão e, ao ser exilada por um grupo de anjos, os seduz e gera sua própria prole de demônios vampiros.

A mulher vampira no mundo

Não só em Lillith, mas por séculos a imagem da vampira seria ligada à bruxaria e a figura. Do mesmo modo que temos Lâmia, uma figura mitológica medieval meio cobra, meio mulher que seduz homens e devora seu sangue (precedendo o mito da sucubus). Temos também Estirge (Strix no latim) da mitologia romana com partes do corpo que remetem a morcegos e corujas. 

No sudoeste asiático um exemplo curioso é Langsuyar, uma mulher pálida de longos cabelos negros e unhas compridas e a minha favorita da lista, Manananggal: uma mulher com asas de morcego mas com a metade do seu corpo cortada e desprendida da parte de baixo. Por isso temos a figura de uma mulher morcego voando com sua víceras penduradas pela barriga.

Todas essas figuras mitológicas serviriam como base de pesquisa para formar o mito moderno do vampiro na mão de autores como em O Vampiro (1819) de Polidori, Carmilla (1872) de Le Fanu e Drácula (1897) de Bram Stocker. E essa ideia é muito bem explorada na nota introdutória de Carmilla pela editora Hedra. Vale muito a leitura.

Entram as Bruxas, saem os vampiros

Em comum a essas figuras estão muitas ações que costumeiramente associamos a bruxas, como o infanticídio e a negação da maternidade, ou até com a emancipação feminina (tema que exploro melhor no meu artigo sobre as bruxas como medo a emancipação feminina).

Porém essa mudança de paradigma aconteceria na Europa no final da Idade Média e teria seu apogeu com a publicação do livro “O Martelo das Bruxas”. Para onde então teria migrado o temor por vampiros um século antes?

Peste Negra

A peste negra foi a pandemia mais devastadora registrada na história da humanidade, tendo seu pico registrado entre 1347 e 1351. Porém, ao contrário do que popularmente se acredita, a peste nunca foi extinguida. na verdade houveram diversos outros surtos epidêmicos no decorrer na história que devastaram grandes metrópoles, principalmente entre os séculos 14 e o 17, sendo a praga de Londres de 1666, a mais culturalmente relevante.

Pior do que isso, a peste agiu mesmo muito antes na história da humanidade, sendo responsável pela Praga de Justiniano no Império Bizantino (527–565 depois de cristo) que fez com que o Império perdesse terras na Ásia e África, assim como causado crises sanitárias muito depois, como em São Francisco em 1900 até 1911 (sete anos antes da pandemia da Febre Espanhola).

Dissecando a doença

Pouco se sabia sobre a verdadeira causa e contágio da peste negra. Num mundo muito anterior a conceitos higienistas e ainda mais alienado na teoria microbiana, a peste era uma doença enigmática e, principalmente, silenciosa. Afetava pessoas que iam dormir saudáveis e acordavam adoecidas, definhando lentamente.

Parte da crença de que os vampiros eram os culpados por espalharem a praga e de devorarem lentamente a vida de suas vítimas devia a falta de conhecimento sobre decomposição dos cadáveres.

Ao abrir valas e descobrirem corpos ainda conservados. Com unhas e cabelos compridos, sangue em sua boca e nariz devido ao vazamento de fluídos pós morte e dentes que parecem mais afiados devido a retração da gengiva.

Para “impedir” que esses corpos voltassem a vida ou continuassem a predar por novas vítimas, as medidas tomadas eram extremas. Decapitações, mutilações, queima de cadáver e até mesmo o inserimento de tijolos nas mandíbulas dos mortos eram feitos, como detalhado nessa matéria da UFRGS sobre um túmulo de Veneza do século XVI.

Vampiro e a peste em Carmilla

Essa mitologia que afetou as mentalidades de pessoas reais, transbordou da realidade para a ficção e respingou nos manuscritos de figuras clássicas da literatura mundial sobre vampiros.

Em Carmilla, por trás de todo subtexto sexual e homoafetivo da protagonista com a sedutora vampira, temos diversas alusões ao tema, como ao seu primeiro encontro com Carmilla. A protagonista sentiu uma pontada no corpo e padeceu doente, ficou acamada por dias e foi medicada intensamente. 

Ou quando ao perceber que a vizinhança estava sendo atacada por vampiros, as protagonistas discutem  se não há uma nova praga ou gripe na região. Um tema que permeia a narrativa da obra. Há até casos das personagens parecer esconderem os sintomas para não alarmar o pai da protagonista.

Vampiro e a peste em Drácula

Em Drácula de Bram Stocker a relação do vampiro com a peste é ainda mais sutil. Muito se fala sobre um aspecto xenofóbico em representar Drácula como uma ameaça estrangeira que procura “contaminar” Londres. Mas essa análise fica mais “humanizada” quando se imagina o vampiro representando uma doença trazia de terras distantes. O Vampiro inclusive viaja a navio e mata lentamente sua tripulação antes mesmo da embarcação chegar ao porto inglês.

Durante o tratamento de Mina Haker contra as investidas do monstro em muito se assemelham aos cuidados de uma eferma, com precárias transfusões de sangue e o uso do alho, um conhecido antibiótico natural, para afastar o vampiro.

Não à toa que o principal reforço contra a força desconhecida é um famoso doutor que reconhece a “doença” de terras distantes. Em que seus maiores esforços de cura são frustrados devido a intervenção da governanta da garota, que falha em acatar recomendações médicas em nome da crendice popular.

A aristocracia e sedução do vampiro moderno

Ainda que Drácula e Carmilla tenham todo esse subtexto sobre crise sanitária e doenças infecciosas. Esse outro elemento já presente nestas histórias e que fora também explorado nas suas adaptações de começo de século XX nos estúdios Universal e Hammer Films. 

Mais do que uma doença que contamina um afastado vilarejo alemão, Carmilla é a representação do desejo sexual feminino e um membro de uma aristocracia antiga que se nega a morrer. Além do temor de uma pandemia do Leste Europeu em Londres, Drácula representa também uma antiga nobreza que se rejuvenesce e seduz. 

Isso fica claro em fenômenos da cultura popular como em “Entrevista com o Vampiro” de Anne Rice e a saga “Crepúsculo” de Stephenie Meyer, ambos adaptados em filmes de grande sucesso comercial. Mesmo mídias que ainda mantém o aspecto de horror, não conseguem se desvencilhar dessa imagem sedutora e aristocrática do vampiro. Para onde então, migraria o medo de doenças contagiosas

Zumbis, o medo biológico moderno

É comumente aceito que o medo simbólico dos zumbis de George Romero (cineasta que revitalizou o mito do morto vivo no cinema) tem teores mais sociais. Principalmente na crítica ao consumismo em Despertar dos Mortos. Mas sua obra influenciaria outras mídias que tratariam o zumbi como o medo moderno pelo contágio epidêmico.

Especialmente em Resident Evil, onde uma empresa de bioquímica ao pesquisar uma forma de rejuvenescer células mortas da pele, libera um terrível vírus contagioso que transforma as pessoas em zumbis através da saliva. Ou em filmes de infestação zumbi como World War Z, a série televisiva e de HQs Walking Dead dentre outros.

Essa transição pode ser vista ainda mais claramente na adaptação do filme “Eu Sou a Lenda” de 2007 onde os vampiros do livro são trocados por zumbis, devido a nova mentalidade popular. Mas todos os temas de contágio, experimentos e sobrevivência continuam o mesmo.

Parasitas e microorganismos alienígenas

Parte do medo do contágio também está presente em contatos com formas alienígenas. Em The Thing (1982), apesar de ser uma forma alienígena que assimila a forma humana ao invés de contaminá-la. Trabalha sua narrativa em um terrível medo de contaminação e experimento sanguíneo para determinar quem era o doente. 

O filme de 82 se distancia gravemente do original “The Thing from Another World” (1951). Onde se aproximava mais dos filmes de monstros da Universal. Até mesmo o episódio “Ice” de Arquivo X, que é uma homenagem clara ao filme de 82, mostra um parasita alienígena que assume o controle de humanos. Fazendo com que se comportem de maneira agressiva para espalhar mais a doença.

Vampiro como simbolismo da peste

Os medos mais íntimos da sociedades irão se representar em figuras populares da arte, literatura e mitologia. E essas representações sempre irão se mutar em figuras novas, conforme as leituras e imaginações se transmutam também.

Que a imagem de uma figura misteriosa e silenciosa que entra nos nossos aposentos escondido, nos rouba a essência da vida lentamente através de afiadas presas possa voltar, e que os vampiros não sejam mais apenas aristocratas e sedutores romantizados.

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