Seguindo a tradição de terror psicológico da série, Silent Hill 3 tem uma narrativa com um pesado simbolismo que remete a narrativa única de protagonismo feminino, puberdade, maternidade e imagem corporal.
Leia um pouco sobre a peça final da trilogia original e impecável desta série magna de terror nos videogames.
Grandes sapatos para preencher
Silent Hill 2 é considerado por muitos como a melhor edição da franquia. O youtuber Super Eyepatch Wolf fez um vídeo ensaio de 23 minutos explicando como a terceira edição da franquia foi o primeiro sinal de enfraquecimento da Team Silent que, teoricamente, estava começando a ser podada pela Konami. Um mau presságio do futuro sombrio que a desenvolvedora iria afligir contra a série.
Porém, não só houve uma quarta edição da franquia que ainda estava nas mãos da equipe, e que esse sim seria claramente inferior aos três primeiros. Como que, se houve mesmo decisões que mudaram os rumos do terceiro jogo, eles foram para um caminho realmente melhor.
Para completar a polêmica, na opinião deste crítico, Silent Hill 3 não só está a altura de seu sucessor, mas que inclusive o supera! Assumindo o segundo lugar no pódio onde o primeiro da franquia assume a liderança. Calma, não puxe uma faca ainda e veja o que tenho a escrever.
Uma sequência tardia
Enquanto Silent Hill 2 funcionou quase como um spin off onde as forças do Culto quase nada tem em relação com sua história. SH3 não só explorou e expandiu a mitologia do Culto, como também deu sequência aos acontecimentos da família Mason. Algo possível somente por intervenção da Konami na equipe criativa.
A ideia era fazer novamente uma narrativa intimista de “inferno pessoal” de uma protagonista nova e desconhecida como no jogo anterior. Mas que teve seus rumos mudados para o que temos hoje já no seu período de desenvolvimento. A sequência de uma história intimista ficaria por conta de Silent Hill 4: The Room.
Porém uma grande oportunidade perdida foi deixar a revelação que Heather era na verdade o bebê renascido que Alessa entregou para Harry no final canônico do primeiro jogo. Nos privando de cenas emocionais de interação entre Heather e o agora envelhecido Harry Mason. Com exceção da brilhante cena no telefone, logo no início de SH3.
O mais terrível
O primeiro jogo da série foi responsável para nos apresentar a mitologia da ordem e os temores de um pai amoroso atrás de uma filha desaparecida. Na segunda edição da franquia, temos um jogo mais depressivo e intimista sobre a narrativa pessoal de uma mente atormentada pela culpa. Em Silent Hill 3, temos a edição mais violenta e agressiva dos horrores da cidade.
As duas introduções com músicas calmas e melódicas abrem lugar para uma composição agressiva com tunes de um agitado rock alternativo. As cores sóbrias e neutras das primeiras edições dão lugar a um vermelho sangue que nos cega a vista. A trilha sonora abusa do ruído ensurdecedor do maquinário pesado que viola nossos ouvidos dando a tonalidade da aventura que iremos desvendar.
Por Heather ser a reencarnação dos corpos divididos de Cheryl e Alessa, é fácil imaginar em como os monstros criados por seu inconsciente e poderes psíquicos sejam mais agressivos e perturbadores.
Uma oportunidade única
A maioria dos protagonistas da série Silent Hill se resume a um cara entre seus trinta anos, com cabelo castanho e roupas de cores neutras. Um grande contraste faz nossa protagonista jovem adolescente de cabelo loiro e sardas.
Com um comportamento mais rebelde de acordo com sua idade, Heather faz comentários sarcásticos e tem uma atitude mais agressiva comparada a passividade quase niilista da maioria dos seus co-protagonistas de série.
Além disso, o jogo se aproveitou dessa situação para explorar possibilidades narrativas únicas de uma protagonista feminina em tão tenra idade, com desafios e neuroses únicas para enfrentar.
Heather e os desafios da puberdade
Um dos elementos narrativos amplamente aproveitados no enredo é a relação de Heather com seu próprio corpo em desenvolvimento, prestes a entrar na maioridade. Um monstro que representa essa relação distorcida com o próprio corpo é Closer, um ser comprido e deformado, com um rosto e pontas das mãos em forma de vagina.
Aliado a esse tema temos “Insane Cancer” que pode representar a aversão ou medo a imagem da obesidade do corpo humano. Um detalhe importante é do monstro ser primeiramente encontrado no estúdio de dança, um ambiente que não é acolhedor a obesidade. O primeiro chefão do jogo lembra um membro masculino não circuncidado, mas esse assunto em Silent Hill leva a tópicos complicados.
Heather constantemente apresenta insatisfação com espelhos. Talvez motivado por uma autoconsciência crítica de seu próprio corpo, que se manifesta claramente numa cena onde vemos seu corpo sendo tomado por chagas em frente a um grande espelho. Possivelmente ligando com a cena onde Heather enfrenta seu lado maligno. Ainda que este trecho represente um enfrentamento ao seu eu perdido em Alessa.
O dilema da maternidade
Outro temor feminino explorado simbolicamente no jogo é a pressão social das mulheres pela maternidade. Boa parte da trama do jogo é envolta sobre a pressão de Claudia, uma autoridade matriarcal dentro da ordem, de convencer Heather a completar o ciclo iniciado por Alessa no primeiro jogo da série, e finalmente dar a luz ao novo Deus do culto.
O temor é refletido em uma das criaturas do jogo, Numb Body, que se assemelha a um feto ou um embrião em fase de desenvolvimento, ainda que essa teoria não fora confirmado por ninguém na produção.
Diversos ambientes se assemelham a um útero ou um canal de parto, aliado ao tema vermelho relacionado a sangue de menstruação. Também podemos notar constantes passagens dentro do jogo que se assemelham ao órgão reprodutor feminino e diversas figuras artísticas relacionadas a maternidade.
Every breath you take, I’ll be stalking you
Já no começo do jogo temos pistas do sentimento de perseguição e obsessão tão comuns no universo feminino. Vemos um homem de meia idade que por algum motivo conhece nossa protagonista pelo nome, perseguindo-a até a porta do banheiro.Lugar onde finalmente Heather consegue despistá-lo.
É verdade que Douglas se confirmaria como um importante aliado de Heather mais a frente. Mas a narrativa de stalker apenas se fortaleceria numa pequena “sidequest” quando Heather encontra o primeiro dos muitos capítulos do diário de Stanley espalhados pelo hospital.
Stanley demonstra uma atração não natural e obsessiva por uma garota menor de idade que ele sequer pode conhecer pessoalmente. Há o debate se Stanley estava vivo ou sequer existia quando Heather primeiro entra no hospital e é constantemente vigiada pelo seu stalker, mas o sufocante corpo número 7 deixa claro que ele não mais existe.
Gaslighting
“Eles são monstros para você?” icônica frase dita por Vincent em um dos encontros com a protagonista. A primeira vez que a vi não posso negar que soprei em uma pequena decepção. A história quase flertou com o equivalente narrativo de “era tudo um sonho” e isso é uma saída fácil demais para uma série tão incrível como Silent Hill em sua trilogia original.
A ideia de que a passagem flerta com o momento final de Angela com seu “para mim, é sempre assim” no título antecessor da franquia traz um pequeno alívio. Ainda somando com a leitura psicológica que para Vincent, um alto sacerdote da Ordem, os monstros realmente podem parecer diferentes. Talvez até se assemelhando a anjos.
Mas a leitura que tenho desta cena é simplesmente o gaslight (tema que abordei nesse artigo). Vincent está tentando manipular Heather para que ela mate Claudia, que Vincent enxerga apenas como uma fanática religiosa. E todos os encontros com a garota durante o jogo reforçam essa narrativa psicológica.
Valtiel, o Piramid Head que vale
Assim como James, Heather também tem uma manifestação demoníaca que a persegue constantemente no jogo, mas que não engaja em nenhuma batalha durante o jogo. Valtiel, com nome que pode ser traduzido para “assistente de Deus”, serve como um protetor não da Heather em si, mas do embrião da Deusa que Heather carrega desconhecidamente em seu ventre.
Há uma possibilidade de Valtiel também representar a super proteção de seu finado pai, que crescera fugindo com sua pequena garota de perseguidores do culto. Mas a narrativa de protetor do feto se confirma na traumática cena onde Claudia devora o feto “vomitado” por Heather. Sendo puxada por Valtiel para garantir o nascimento da divindade.
Nada me tira da cabeça que essa cena foi concebida como um aborto, mas a imagem de um feto sendo abortado de Heather para ser reinserido por Claudia era algo gráfico demais para um jogo de começo do milênio.
Uma despedida digna da família Mason
Heather demonstra um dos desenvolvimentos emocionais mais surpreendentes e cativantes do jogo. Amadurecendo e lidando com a morte de seu pai. Abandonada num mundo hostil a sua presença, e com o peso de ter vivido três vidas e posto fim em uma divindade.
É por isso que, para este crítico, Silent Hill 3 é a última experiência genuína da série, e uma experiência ainda mais satisfatória que o aclamado SH2. Nos oferecendo sem dúvida, a mais interessante protagonista de toda a série.
Mas não se engane, Silent Hill 4 ainda tem seu espaço, e logo receberá sua própria análise nesse blog.