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Por que não há uma “verdadeira história” da Medusa

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Por que não há uma verdadeira história da Medusa

Vilã, belíssima, monstro ou vítima de estupro? Entenda por que não existe uma “verdadeira história” da Medusa na mitologia grega.

Conhecido monstro da mitologia grega com serpentes como cabelo e um olhar petrificante, a Medusa e suas irmãs górgonas transbordaram para diversas narrativas pop como monstros a serem vencidos.

Porém, uma nova releitura diz que na verdade, Medusa foi uma personagem injustiçada. Vítima dos desmandos dos deuses olimpianos e de uma sociedade machista. O que será verdade então?

Em busca de uma história original

Aquele que se leu ou se dedicou ao estudo de mitologia, sabe a dificuldade de traçar a origem dos mitos. Nossa mentalidade moldada pelo cristianismo nos faz acreditar que tudo tem uma origem clara, geralmente um livro sagrado que contém todas as escrituras de eventos e imagens do que aconteceram no passado.

Porém as mitologias nascem numa época anterior ao desenvolvimento da escrita. Onde histórias eram passadas oralmente através de gerações e diferentes instituições sagradas, onde cada geração moldava seus mitos de acordo com os interesses vigentes.

Isso sem contar o contato com diferentes culturas ou etnias. Gerando miscigenação, apropriação ou mesmo o extermínio de civilizações rivais. Tudo isso gera uma influência na formação e transformação dos mitos daquela cultura.

O caldeirão cultural que criou a mitologia grega

É aceito que a mitologia grega foi forjada na Idade do Bronze, em uma profusão de diversas culturas que habitavam onde hoje é a Grécia. Porém, é necessário destacar a cultura Minoica da Ilha de Creta (entre 1450 e 1100 antes da Era Comum) e os Micênicos (entre 1600 e 1100 antes da Era Comum).

Mas foi durante o período chamado de “idade das trevas grega”, posterior ao colapso da Idade do Bronze (por volta de 1200 AEC), onde os gregos perderam o aprendizado da escrita, que a mitologia grega foi solidificada.

Seu primeiro registro através de Homero

Foi com os poemas épicos de a “Ilíada” e “Odisséia” atribuídos a Homero (que talvez nem tenha existido, mas isso é assunto para um novo texto) que teríamos os primeiros registros mitológicos gregos que sobreviveriam aos tempos modernos.

Sua sobrevivência se deu ao fato de, por serem rimas, a memorização das passagens minimiza seus erros. Contundo, todas as divindades apresentadas nas histórias são inseridas sem introduções ou explicações. Pois as figuras já eram de conhecimento comum na cultura grega que elas circulavam.

Até o momento, a mitologia grega era difusa em diversas narrativas fragmentadas. Existiam diversas seitas diferentes, que admiravam diferentes divindades. Nelas, cada uma das seitas construíram sua própria narrativa cósmica dos eventos.

A unificação das histórias sob Hesíodo

Foi apenas com o poema épico “Teogonia” (Genealogia dos Deuses) escrito por Hesíodo no século 8 AEC, que foi criado uma primeira tentativa de unificar esses mitos em uma contínua e histórica cosmologia.

Nele, que temos fixado em palavras a história de Perseu que, com a ajuda dos deuses olímpicos, cortou a cabeça de Medusa e a deu de presente para Atenas. Vale lembrar que esta mesma cena já havia sido registrada em diversas pinturas de vaso grega, uma forma comum de se contar histórias na Grécia Antiga.

Nessa primeira versão da história registrada em texto, Medusa era uma das três górgonas. Irmãs monstruosas com cabelo de serpentes, grandes bocas com presas de javali, línguas penduradas como as de cachorro e até uma pequena barba no rosto.

Porém, mesmo séculos antes da Teogonia, algumas esculturas e pinturas gregas do período helenístico mostravam Medusa, sim, com seus cabelos em forma de cobras, mas com uma expressão bela, delicada e feminina. O poeta Pindar também elogiaria a beleza de Medusa em um ode de 490 AEC.

A releitura de Ovídio

É com o poeta romano Ovídio em sua obra “Metamorfoses”, do ano 8 depois da era comum, que foi criada a primeira “história de origem” do monstro grego. Colocando Medusa como a mais bela das sacerdotisas do templo de Minerva (a correspondente romana da Atena grega).

Parte importante dessa história, as sacerdotisas deveriam jurar castidade após assumirem sua responsabilidade com a deusa. Ovídio relata, através do ponto de vista de um terceiro, como Netuno (Poseidon para os gregos) teria violado Medusa no templo de Minerva e a deusa, revoltada com a profanação de seu templo, pune a sacerdotisa com sua feiura, a transformação do seu belo cabelo em cobras e a maldição de petrificar todos que a olharem novamente.

O primeiro problema desta narrativa já se encontra na tradução. Ovídio no original usa o termo “vitiasse” que pode ser interpretado tanto como violência sexual, como violação da castidade do templo de Atena. Também não explica se Medusa fora seduzida ou coagida ao ato. Detalhe altamente supérfluo para a visão paternalista das narrativas clássicas greco-romanas.

Em outra narrativa que coloca Minerva como uma possível vilã, Ovídio também cria a origem de Aracne. Uma fiadeira que desafiou ser melhor que minerva em sua arte, e acabou transformada em uma aranha gigante.

Um milênio de Medusa, de sua criação até Ovídio

Todas as representações de Medusa que comentei até então, seja como monstro, como bela donzela e como vítima, foram retratas em diversas formas de pintura e esculturas. Séculos antes da reimaginação de Ovídio. Todas essas leituras podem ser vistas nesse artigo (em inglês).

De qualquer forma, é importante lembrar que essa leitura de Ovídio é formalizada onze séculos após os primórdios da mitologia grega, oito depois de sua primeira aparição na Ilíada.

Foram pelas palavras de Ovídio que o mito de Perseu (e por sua vez, de Medusa) foram popularizadas no ocidente. Diversas pinturas e esculturas, principalmente no renascimento com a pintura de Caravaggio e a escultura de Cellini.

A medusa no divã da psicanálise

Foi na psicanálise que tivemos a primeira releitura moderna do mito da Medusa. No ensaio de Freud intitulado “Cabeça de Medusa”, o autor relaciona a decapitação com o complexo de castração. Considerando as cobras em sua cabeça como um símbolo fálico. E que o horror de ser petrificado se relaciona com o medo da castração simbólica.

Freud foi famoso por reinterpretar clássicos da literatura greco-romana como manifestações do inconsciente através da arte. Sua análise mais conhecida talvez seja o complexo de Édipo. Termo designado para o desejo inconsciente que todo homem busca se casar com a imagem da própria mãe. Na peça teatral “Édipo Rei”, o protagonista acidentalmente mata seu pai e se casa com a própria mãe.

A Medusa reinventada no Feminismo

Bem, é o motivo de termos traçado todo esse caminho até aqui.

Desde o século passado que o mito da Medusa vem sido reimaginado para se incorporar conceitos modernos dos estudos de gênero como “male gaze” e a culpabilização da vítima em casos de estupro. Fazendo uma leitura enviesada de Ovídio, dizendo que Netuno sem dúvida alguma estuprou Medusa e Atena, sobrinha de Poseidon, puniu apenas a mortal para não entrar em conflito com os olimpianos.

Para quem desejar, recomendo fortemente ler o livro “metamorfoses” de Ovídio, em uma tradução que melhor se aproxime do original em latim, e veja por conta própria. Não só pela valiosa peça literária da obra, mas para ver que a história da poucas margens para esse tipo de leitura. Onde a maior preocupação do autor é mesmo a violação do templo e o senso de justiça dos deuses.

O que acontece então?

Quem acompanha o blog sabe que eu não tenho problemas com o feminismo, como visto em meus posts sobre o filme Gaslight e a criação do termo Gaslighting. Ou mesmo com a reinvenção de mitos antigos de forma a validar discursos de gênero, como meu artigo sobre a bruxa como medo de emancipação da mulher.

Porém o grande erro é tentar traçar uma “história original”, uma narrativa oficial e de alguma forma “escondida” por três milênios. Que esconde uma narrativa oculta de uma  mulher guerreira, vítima do patriarcado.

Acontece que mitos e lendas são justamente isso. Histórias inventas, reimaginadas e reinterpretadas para diversas leituras e visões de mundo. Não há uma história real, nunca teve. Existe apenas histórias que dialogam conosco da sua forma mais imersiva.

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