Bizarros RPG de de terror japoneses dos anos 80, só o título desse artigo já deve despertar a curiosidade de qualquer leitor. RPG e terror, poderia uma junção de gêneros tão destoantes proporcionar uma experiência satisfatória?
É claro que existem jogos famosos que fazem essa mistura como “System Shock 2”, a série Diablo e Parasite Eve. Porém ao fazer uma pesquisa sobre o assunto, acabei tropeçando em algo maior do que esperava.
Jogos de RPG com temas de horror foram bastante comuns no japão dos anos 80, eu já conhecia alguns dos títulos mas ao levantar uma pesquisa para publicar aqui, acabei descobrindo inúmeros títulos com jogabilidades e temáticas bastante únicas. E por isso decidi trazer esses jogos a luz, espero que se divirtam nessa aventura tanto quando eu me diverti pesquisando.
NEC PC-88/PC-98, MSX II e Sharp X68000
Antes de listar os jogos, sinto que é necessário fazer uma preparação digna para os marinheiros de primeira viagem. Existe um motivo para que esses jogos japoneses serem tão obscuros e muitos não terem sido levados ao ocidente. E para entender o motivo, é necessário um pouco de história da programação dos computadores pessoais.
O começo dos anos 80 marcou a transição dos computadores gigantes para uma versão portátil que uma pessoa poderia ter em casa. Diversas empresas diferentes criaram seus próprios protótipos até a IBM padronizar o desenvolvimento em parceria com a Microsoft, tendo apenas a Apple como concorrente. Porém, no Japão a coisa não foi bem assim.
Nas bandas de lá, três modelos de computadores pessoais disputava entre as três empresas citadas. Devido a estrutura única de cada um desses computadores, a portabilidade era um desafio à parte, além da tradução. Por isso um mar de jogos digitais interessantes permaneceu desaparecido no ocidente, até então…
The Screamer
Ano de lançamento: 1985
Plataforma: PC-88, port para PC-98 em 1986.
The Screamer é um jogo cyberpunk pós apocalíptico onde você assume o papel de um caçador de recompensas encarregado de matar criaturas mutantes criadas através de um experimento militar biotecnológico japonês após uma guerra nuclear. O jogo tem um pesado ambiente de bioterror e horror corpóreo de fazer inveja a muito Resident Evil no futuro.
História
A história do jogo se passa no futuro ano de 199x, o mundo sofre uma escassez de alimentos. Para controlar a situação, o Japão cria uma unidade de pesquisa biológica para produção de alimentos artificiais chamada: Biological Intelligence in Artificial System, ou BIOS (Inteligência Biológica em Sistemas Artificiais) no sopé do Monte Fuji.
Porém durante a guerra, a unidade é atacada. Gerando uma falha em seus sistema de inteligência artificial, causando vazamento de lixo tóxico e o descontrole de experimentos genéticos de inteligência artificial, criando diversos monstros mutantes, um ataque generalizado é impedido devido ao medo de espalhar vírus, bactérias e microorganismo mutantes no ambiente. O instituto também tem um sistema próprio de auto defesa que foi acionado sozinho e dispara contra qualquer invasor que entrar.
O governo colocou recompensas nos monstros criados pelo seu laboratório, o que trouxe uma pequena comunidade ao redor do monte de caçadores de recompensas, ex-militares e pessoas desempregadas buscando um sustento ao matar feras ou revender peças do instituto de tecnologia.
Jogabilidade
No jogo você toma o lugar de um Screamer, um desses muitos caçadores de recompensa. A jogabilidade de The Scream é divida por combate, exploração da dungeon e interatividade na cidade.
A exploração do jogo é feito em primeira pessoa, ao navegar por pequenos corredores em forma de labirinto como em Wizardry e Phantasy Star. Já em combate, a jogabilidade se transforma em um shooter 2D como em Metroid. Na cidade é possível vender itens saqueados para comprar um equipamento melhor.
Não achei um gameplay traduzido para inglês no youtube então tive uma boa dificuldade de acompanhar a narrativa, mas parece que o final circula sobre uma reviravolta terrível que frustrou alguns dos jogadores japoneses. O jogo tem diversas influências de Blade Runner, Mad Max e Hokuto no Ken (Punho da Estrela Polar), série de mangás japonesa sobre um mundo pós apocalíptico destruído por uma guerra nuclear.
O port para PC-98 em 1986 pareceu apenas atualizar os gráficos e sons e não mudou muito do gameplay, pelo menos me pareceu.
Shiryou Sensen: War of the Dead
Ano de lançamento: 1987
Plataforma: MSX2
No segundo jogo dessa lista, o jogador assume o papel de Lila (o nome pode variar devido a interpretação da katakana) membro da equipe especial S-Swat especializada em paranormalidade.
A história gira em volta do misterioso desaparecimento da pequena cidade de “Charney’s Hill” onde todas as comunicações locais foram cortadas e uma equipe militar previamente enviada havia desaparecido completamente. O enredo seria uma clara influência ao primeiro Resident Evil, lançado 9 anos depois.
Jogabilidade
A jogabilidade de War of the Dead é também dividida em duas formas. No modo exploração a câmera é aérea, como a maioria dos RPG do final dos anos 80 e começo de 90 seriam famosos, mas o sistema de batalha muda para um modo plataforma lateral, semelhante com o “The Screamer” e amplamente popularizado por “Zelda II: The Adventure of Link”.
A premissa do jogo consiste em batalhar contra os monstros que dominaram a cidade e resgatar as pessoas e levarem a igreja, único lugar da cidade não afetado pelo misterioso fenômeno. Os personagens encontrados na cidade são referências a diversas obras e personalidades do terror, como o Padre Carpenter (em homenagem ao diretor John Carpenter), Carrie (protagonista de Carrie a Estranha), Romero (diretor George Romero), entre outros.
Inovações
Dos elementos de gameplay inovadores para a época, o jogo conta com a divisão de “dia e noite”, com seis períodos diferentes de iluminação entre claro e escuro; uma contagem de dias na duração do jogo de quanto tempo você sobreviveu (que aparenta não influenciar o gameplay); e a escassez de armas e itens, que seria influência fundamental nos Survival Horrors no futuro.
A aleatoriedade das batalhas não está relacionado com o movimento, mas sim com o tempo de jogo, sendo possível entrar em duas batalhas consecutivas sem tocar no controle, o que dá um toque de frustração no gameplay.
A versão original foi lançada para MSX2 em 1987, mas teve ports para PC-88 e PC Engine (turbografx-16, fora do Japão) em 1989, e um relançamento do jogo original com o subtítulo “Browning’s Resurrection” em 1989, com bastante diferenças entre cada port. Além de uma sequência lançada em 1988.
A Hardcore Gaming 101 fez dois artigos maravilhosos sobre o jogo e sua sequência do qual eu peguei muita informação, caso tenham familiaridade com o inglês, recomendo a leitura do artigo original.
Laplace no Ma (Laplace’s Demon)
Ano de lançamento: 1987
Plataforma: PC-88
Talvez seria um pouco ousado dizer que “Laplace no Ma” fosse a primeira tentativa de adaptar os jogos de RPG de mesa da série “Call of Cthulhu”, porém todos os elementos de uma campanha de Call of Cthulhu estão presentes nesse jogo, além da atmosfera sombria e estética das criaturas que assombram o jogo.
A história se passa em 1923, na cidade fictícia de Newcam, nos arredores de Boston, Massachusetts. As semelhanças com a Arkham dos contos de Lovecraft são inegáveis. O jogador tem a liberdade de escolher sua classe no começo do jogo que, assim como é nas mesas de RPG de Call of Cthulhu, são bem diferentes das classes de fantasia medieval mais comuns em RPG.
Suas escolhas são:
Detetive: Classe que pode usar armas e aguenta melhor na briga.
Medium: Classe que pode usar magias mediúnicas, mais efetivas em certos monstros que não são afetados por ataques físicos.
Cientista: Pode construir uma máquina que machuca os inimigos com raios e que vai se aperfeiçoando com o tempo.
Diletante: Uma espécie de pesquisador especializado no “Mythos” lovecraftiano, em antiguidades e fenômenos insólitos.
Jornalista: A única fonte de dinheiro no jogo. Com essa classe você pode tirar fotos dos monstros e fenômenos anômalos e vendê-los para o dono do hotel. Porém é completamente inútil em combate.
Junto com o personagem principal, o jogador poderá ir na taverna da cidade e escolher mais três personagens dentre os cinco disponíveis cada qual representante de uma das profissões listadas e compor uma equipe diversificada. O objetivo é investigar a mansão Weathertop nos arredores da cidade.
O jogo era parte de uma grande série de jogos de horror no japão, que podem ser considerados fantasmas visto o quão difícil é pesquisar sobre eles. Os títulos que eu pude achar foram “Paracelsus no Maken” (Espada Diabólica de Paracelso) e The Mask of Black Death Kurokishi no Kamen, ambos de 1994. E que aparentam manter a tema investigativo com terror. A empresa Humming Bird Soft responsável pela série também produziu alguns títulos obscuros de terror nos anos 80 como “Abyss” e 地獄の練習問題 (que o google me diz ser “exercícios do inferno”).
Matemática maligna
O nome do jogo é baseado num experimento mental proposto pelo matemático Pierre Simon Laplace. O experimento é um exercício mental da filosofia determinista. Conceito filosófico que define que todas as ações e fenômenos naturais estão interligadas por relações de causalidade e leis universais.
Portanto, se existisse uma mente (de um demônio, talvez) capaz de captar o momento e posição de tudo no universo, ela poderia descrever com precisão tudo o que aconteceu e irá acontecer. No jogo, existe de fato um monstro com o nome de Demônio de Laplace, mas não posso afirmar com garantia se ele se relaciona de forma mais complexa ao conceito filosófico.
Existem diferenças notáveis entre a versão original para PC-88 e seus ports para PC Engine em 1993 e SNES em 1995 que variam da customização dos personagens, campos de visão e gráficos. A versão de SNES teve um patch de tradução do japonês para inglês e pode ser acessado por aqui.
Digital Devil Story: Megami Tensei
Ano de lançamento: 1987
Plataformas: NES e PC-88
Jogo que iniciou toda a franquia “Megami Tensei” de jogos digitais, incluindo spin off que se tornaram em si, novas franquias, como Persona e Nocturne. O jogo seria uma adaptação direta do livro “Digital Devil Story” pelo escritor Aya Nishitani. Caso queria saber mais sobre o livro, recomendo o artigo “A História do Demônio Digital, e o começo obscuro de Shin Megami Tensei” do café 8-bits.
Duas versões distintas do jogo foram criadas e lançadas no mesmo ano, por empresas diferentes. Sendo Namco a empresa que produziu a versão para Famicom (Nintendo 8-bits no japão) e Telenet para computadores. Com a Atlus lançando sua versão para SNES em 1995.
História
A história de Digital Devil Story fala sobre Akemi Nakajima, um aluno brilhante que conseguiu criar um programa de computador que sumona demônios de outra dimensão. Após sofrer bullying na escola, ele decide usar o programa para se vingar.
Porém o programa foge do controle e acaba liberando uma horda de demônios. Entre eles, poderosas divindades como: Loki, da mitologia nórdica, Set a encarnação da maldade da mitologia egípcia e Lúcifer, mestre dos demônios.
Nakajima descobre posteriormente que é a reencarnação de Izanagi e sua amiga Yumiko Shirasagi é a reencarnação de Izanami. Ambos deuses da criação na mitologia japonesa. Juntos, os dois irão enfrentar as hordas de demônios de Lúcifer e selar o portal para a outra dimensão.
Jogabilidade
Dentre os fatores únicos da jogabilidade do jogo está a possibilidade de recrutar monstros para sua equipe. Hoje comum na franquia Shin Megami, foi uma grande novidade da época chegando inclusive a influenciar a franquia Pokémon.
A história do jogo desenvolvido para NES parece seguir com bastante fidelidade os acontecimentos do livro, porém a versão para computadores se perdeu completamente no conceito e lançou um jogo de ação genérico.
Sentiu falta de algum jogo do gênero? Não se preocupe, essa é apenas a primeira parte deste artigo. Receba mais uma pesada dose de jogos RPG de terror japoneses com a segunda parte deste artigo no link abaixo:
Esse artigo é parte de uma série de artigos sobre a história de jogos de terror. Confira os outros:
O horror como gameplay antes do Survival Horror (1980 – 1989)
O Horror como temática em jogos de Ação e Aventura (1982-1992)
O horror atmosférico dos Adventures (1989 – 1998)
Os bizarros jogos RPG de terror japoneses
Parte 1 e Parte 2