Essa é uma análise de duas partes do jogo que tomou a internet de assalto nas últimas semanas chamado Doki Doki Literature Club. A primeira é pra convencer você, caro leitor, que ainda não jogou esse jogo e mantém dúvidas sobre a qualidade do mesmo.
A segunda é para demonstrar como sua narrativa, e principalmente sua resolução, se relacionam com um dos principais elementos da tragédia grega, a inevitabilidade do destino. Portanto embarque nessa aventura literária do Clube de Literatura Doki Doki.
Doki Doki Lit o que?
Doki Doki Literature Club é o tipo de jogo que quanto menos se sabe sobre ele, melhor. Portanto fazer um review adequado e sem spoilers é basicamente uma longa caminhada num campo minado. Por esse motivo essa primeira parte apenas levantarei alguns aspectos do jogo que podem alimentar a curiosidade e vontade de descobrir a obra.
Em um grande resumo, DDLC é um date simulator tematizado com Horror Psicológico com uma estrutura ludológica pós-moderna. Não se preocupe, eu irei descrever exatamente o que cada termo nessa frase significa mais detalhadamente.
Date Simulator?
Date Simulator (ou simulador de encontros) é um jogo focado em colocar o protagonista frente a diversas possibilidades de romances com um ou diversos personagens diferentes dentro de uma história.
O aspecto mais comum desse jogo é o “harém”, onde todos os personagens são do sexo oposto do protagonista e cabe a ele conquistar romanticamente um ou mais personagens. Há Date Simulators voltado exclusivamente para pornografia, mas também com direcionamento para romances e dramas. Algumas paródias desses gênero são famosas, como o Hatoful Boyfriend, Faustão Date Sim e Nicolas Cage Dating Simulator.
DDLC usa uma estrutura de Visual Novel (romance visual), ou seja, um foco demasiado em texto, caixas de diálogo e desenvolvimento de personagens com pouquíssima interação, reservada apenas escolhas tomadas durante a história. No caso de DDLC, a escolha de palavras para compor um poema a cada dia.
Horror Psicológico?
Para uma explicação mais específica sobre esse gênero do terror, eu recomendo meu texto sobre A Bruxa e o Horror Psicológico. Para uma explicação mais vaga (ou para aqueles com preguiça de ver o texto), podemos dizer que é um gênero onde a sensação de medo não vem de sustos ou monstros. Mas sim de uma constante sensação de insegurança e angústia, com temas que tentam afetar o psicológico do espectador.
Obras do gênero também trabalham mais detalhadamente o psicológico dos personagens, trazendo traumas e doenças psicológicas como traços de personalidade e elementos de narrativa. Ao presenciar uma obra de horror psicológico, é mais comum termos uma sensação de repulsa e confusão mental, do que o medo direto de algo assustador.
Pós modernidade ludológica
Também expliquei mais detalhadamente esse aspecto da arte e narrativa contemporânea no meu texto sobre Deadpool e quebra da quarta parede, numa descrição mais básica podemos dizer que a subversão da arte em sua forma, contexto e narrativa.
No sentido ludológico (ludo = jogo), remete justamente ao conteúdo de narrativa e interação através da estrutura de um jogo. Com suas mecânicas e interações próprias desta mídia.
Conciliando os dois termos, essa abordagem consiste em personagens que quebram a expectativa do jogador ao demonstrar terem ciência de sua existência como personagem de um jogo, e geralmente quebrando a barreira do que se entende por jogo.
Porque jogar DDLC?
DDLC convence como jogo de Date Sim. Sua narrativa, ainda que prolongada e com o mínimo de interação até mesmo para o gênero, é bem escrita e apresenta personagens interessantes e bem construídos.
A grande reviravolta da história, mesmo que pareça telegrafada inúmeras vezes na narrativa, é surpreende quando chega. E a sensação de curiosidade aliada a surpresa e ansiedade conseguem fisgar o jogador que tentará de tudo para “resolver” a história. Tentando encontrar um desfecho para a espiral de sofrimento dos personagens. E é esse tema que reflete exatamente a principal ideia da tragédia grega.
Se você que como eu, já jogou esse jogo maravilhoso e está curioso para ver o que eu tenho a dizer sobre ele, prossiga para os próximos parágrafos. Se você ainda não jogou e ainda não sentiu-se convencido a testar esse jogo disponível gratuitamente na Steam, saiba que spoilers afetam diretamente a experiência de sua narrativa. Prossiga por conta e risco.
Um breve resumo dos personagens
Com alguns minutos dentro do jogo somos apresentados a quatro personagens que, de certa forma, se encaixam em alguns dos estereótipos de narrativas adolescentes tanto de visual novels e date sims, mas também de animes, filmes e quadrinhos.
Temos Sayori, amiga de infância um pouco desajeitada mas dedicada a animar todos ao redor. Yumi, uma tímida e inteligente leitora de terror e literatura clássica. Natsuki, uma baixa e esquentada tsundere (um arquétipo de mangá e animes, onde a personagem oscila entre uma personalidade amável e agressiva, com dificuldades para expressar sentimentos) e Monika, a garota popular da escola e líder do grupo.
Como parte da surpresa narrativa do jogo, vemos que esses pequenos traços de personalidade acabam escalando em problemas muito maiores. Sayori de boa intencionada amiga, sofre de depressão crônica, por isso tenta animar a todos para compensar a extasiante tristeza crônica que carrega em si.
Yumi de tímida e introvertida, revela suas crises de ansiedade com caraterísticas autodestrutivas ao lidar com seus sentimentos. Natsuki mostra que seu reduzido tamanho e temperamento inseguro residem na subalimentação e relação abusiva que vive com seu pai. É Mônica porém, que demonstra sua obsessão com o jogador de maneira mais surpreendente.
O plot twist
A grande revelação é que Monika tem ciência de sua posição como personagem e usa seu poder para manipular o script do jogo em seu favor. Piorando os problemas das personagens e até as apagando, unicamente por estar apaixonada pelo jogador e querer passar mais tempo com ele. Resultando num momento onde não resta mais nada para o jogador ver ou interagir, apenas a expressão apaixonada de Monika na tela.
Se o jogador apagar manualmente o arquivo de Monika dentro da pasta do jogo, ela perceberá o que aconteceu e reiniciará o jogo. Porém apagará o próprio avatar de dentro da história, entendo que é isso que o jogador quer. Porém quando Sayori torna-se presidente do clube, ela também toma ciência de si mesma e se torna obcecada pelo jogador.
A inevitabilidade do destino
Monika compreende a inevitabilidade do destino trágico que a posição de líder no jogo carrega em si, e decide-se por renunciar a própria existência deletando todo o jogo, incluindo as imagens nos créditos, e deixá-lo inoperante.
Existe porém um final secreto que exige que o jogador dedique todo o tempo para se envolver com todas as personagens. Salvando e reiniciando o jogo antes que as coisas “dessem errado”.
Então quando Sayori assume o comando do jogo, ao invés de ela cair no mesmo vício da Monika, ela agradece toda a preocupação do jogador em aproveitar o tempo com as personagens do clube, e finaliza o jogo com um final feliz, sem apagar nada. Entenda essa típica narrativa de tragédia.
Tragédia na Grécia Clássica
Um elemento clássico da tragédia no teatro grego é a inevitabilidade do destino e a necessidade dos personagens em lidar com algo maior que si mesmos. Em Rei Édipo, o protagonista é predestinado a matar seu pai e casar com sua mãe. Ele dedica toda trajetória de sua vida à evitar seu destino, e é a sua incapacidade de aceitá-la que leva a sua ruína (estou tentando livrar vocês de spoilers).
Com ciência de si ou não, todo personagem de Doki Doki está predestinado a se manter no jogo e não transpor sua realidade. A relutância de Monika com essa ideia leva a um ciclo interminável de sofrimento a todos. Ainda que após apagá-la ela aceite não poder se projetar para fora do jogo, vê Sayori assumir seu lugar, unicamente para cair no mesmo ciclo de tentação e tragédia.
A afirmação da vida como ela é
É somente quando Sayori também compreende a impossibilidade do que deseja e reconhece o esforço do jogador em alegrar a todos que a paz é finalmente alcançada. Sayori sabe agora que apenas esses belos momentos da narrativa é que valem ser vividos.
Que ambicionar a projeção fora do jogo, o amor de uma pessoa fora de sua realidade, apenas irá perpetuar a rota de sofrimento para ela e outros personagens, até mesmo para o jogador.
Por isso a lição que fica no jogo, na tragédia grega e até mesmo na vida é de aprendermos a lidar com as coisas que não podemos mudar e aceitar de coração o que nossa existência tem a oferecer de bom. Caso ainda sobre dúvida sobre essa resolução, aqui está a música feita por Monika, traduzida para o português:
Your Reality (Sua Realidade)
Todos os dias, eu imagino um futuro onde eu possa estar com você
Em minha mão está uma caneta que irá escrever um poema sobre eu e você
A tinta flui sobre uma poça escura
Apenas mova sua mão
trace um caminho para seu coração
Mas nesse mundo de escolhas infinitas
O que será preciso, apenas para encontrar aquele dia especial?
Teria eu achado para todos uma tarefa divertida para fazer hoje?
Quando você está aqui, tudo o que fizemos é divertido para elas de qualquer forma
Quando eu não consigo ler meus próprios sentimentos
Quão boas são as palavras se um sorriso diz tudo?
E se esse mundo não irá me escrever um final
O que será preciso para mim, para ter tudo?
Será que minha caneta, apenas escreve palavras amargas para aqueles que são queridos a mim?
É amor se eu levá-lo ou é amor se eu deixá-lo ir?
A tinta flui sobre uma poça escura
Como posso escrever amor na realidade?
Se eu não posso ouvir o som do seu coração bater
O que você considera amor na sua realidade?
E na sua realidade, se eu não saber como amar você
Eu o deixarei ir