O momento que eu mais temia finalmente chegou. Estou no fim da minha segunda especialização e por isso, tenho de dar total atenção a meu TCC. Porém, para não deixar o site abandonado e sem conteúdo, decidi selecionar os fichamentos e resumos que estou fazendo para o TCC que tem alguma ligação com a cultura geek e postar aqui nos dias que geralmente teria textos novos. Para quem sabe ajudar algum outro estudioso do tema que esteja perdido por ai.
O fichamento de hoje é do livro Mapa do Jogo, um dos mais importantes livros sobre estudo acadêmico de videogames e é organizado pela Lucia Santaella e Mirna Feitosa. Espero que gostem.
Citação ABNT
SANTAELLA, Lucia & FEITOZA, Mirna (org.). Mapa do jogo: a diversidade cultural dos games. São Paulo: Cengane Learning, 2009.
Mapa do Jogo é um grande conjunto de artigos científicos que tratam sobre jogos digitais em suas mais variáveis formas. Organizado pela Lucia Santaella e Mirna Feitoza, duas monstras da área de comunicação e semiótica (das quais eu já comentei num artigo sobre proficiência feminina no estudo acadêmico de jogos digitais) e que tem seus próprios artigos publicados no livro.
O livro traz uma abordagem dinâmica e variada sobre os mais diversos temas dos jogos digitais e resumi-los todos seria uma injustiça com cada artigo, então selecionei três artigos que utilizei para meus estudos e fiz o devido fichamento de cada um deles.
Os artigos são separados no livro por cinco capítulos que variam em tema os estudos apresentados, irei abordar resumidamente cada capítulo.
Parte 1, games: emergência de um campo teórico
Os artigos presentes nesta sessão tratam da necessidade de um estabelecimento teórico para o estudo acadêmico dos jogos digitais como mídia. Desse capítulo eu fiz uso do artigo chamado: “Reflexões acerca do videogame: Algumas aplicações e potencialidades”, de Sérgio Nesteriuk, abaixo segue meu fichamento sobre o artigo.
Fichamento de Sérgio Nesteriuk, Reflexões acerca do videogame: Algumas aplicações e potencialidades.
Este artigo foi para mim um dos mais úteis em uma pesquisa para definir os jogos como mídia. Nele, Sérgio Nesteriuk dá uma breve resumida de qual é a situação do estudo dos jogos digitais e faz divisões claras das áreas de estudo, como os estudos que tem uma visão apocalíptica dos videogames, focando nos aspectos negativos e em estudos que associam os jogos com a violência e a alienação (neoluditas) e as que enxergam o jogo como algo que pode ser usado para um fim útil, e assume que o processo de tecnologia e informação é irreversível (tecnoutópicas). (pg. 23 e 24).
o autor ainda aponta uma terceira linha de pesquisa, os estudos formalistas, que analisa os jogos por suas potencialidades intrínsecas em linguagem e estética da qual o meu artigo de TCC faz parte. Nela, há um estudo sério sobre a interdisciplinaridade dos jogos como mídia.
Na subcategoria “Videogames: definições e características” o autor faz exatamente isso, busca uma definição teórica do que vem a ser o videogame como mídia, e dessa análise eu considero essencial o enxerto abaixo:
“O videogame – em si e também em aspectos circundantes – é hoje um dos fenômenos tecnológicos de maior interdisciplinaridade e complexidade para se estudar. Ciências e conhecimentos em campos diversos de áreas como filosofia, semiótica, (…) telecomunicações, arte, comunicação, design, jogabilidade e taxonomia, entre uma infinidade de outros, coabitam as inúmeras faces deste múltiplo e singular prisma que compõe a criação e o estudo dos videogames (NESTERIUK in SANTAELLA E FEITOZA, 2009, pg. 27)”
Mas a frente o escritor reforça o caráter do jogador como agenciador da narrativa pela forma como se dá a interatividade do jogador com a história, reforçando o que já foi trabalhado por Santaella e Janet Murray. (que são devidamente citadas no decorrer da argumentação.
O autor conclui seu artigo de forma otimista com os rumos e potencialidades que os jogos podem adquirir, mas não sem considerar os bloqueios que as obras sofrem como parte da indústria do entretenimento. Ele aponta até a capacidade de influência dos jogos em outras mídias ao ao apontar que o consagrado autor de ficção científica que praticamente fundou o cyberpunk (Gibson) se inspirou na criação de sua história com um jogo rudimentar como pac-men, o que brotaria de escritores que crescessem sobre a influência de jogos mais artísticos e caprichosamente estéticos. Acreditando também na evolução do estudo sobre jogos de forma cooperativa.
Parte 2: Games e construção de linguagem.
Nesse capítulos temos os artigos que trabalham a questão da linguagem e comunicação do jogo, como a estrutura narrativa é criada e quais são suas problemáticas. Dessa sessão eu usei o artigo de Renata Gomes chamado “Shenmue e o Dilema Narrativo, do qual, segue o fichamento abaixo.
Fichamento de Renata Gomes – Shenmue e o dilema narrativo
Esse artigo é muito útil para quem procura um estudo que aborde o aspecto narrativo do jogo. Nele, Renata Gomes aborda o conflito paradoxal narrativo de Shenmue, que fica no embate entre um jogo mundo aberto livre para o jogador explorar e uma narrativa densa e linear que exige atenção e tempo marcado para completar suas ações. Shenmue repopularizou o conceito de “mundo aberto” com narrativa densa antes de GTA 3, sendo lançado um ano antes.
Logo no início do artigo a autora aborda essa concepção conflitante no universo da criação de uma história de jogo digital. Criar um mundo totalmente livre para a exploração ou uma densa narrativa linear que mantém o jogador preso numa história. A autora então aponta Shenmue como uma das primeiras obras a buscar uma “terceira via” a conciliar narrativa e jogabilidade livre.
O cronotopo de aventura ae a linearidade da fábula
Nessa seção do artigo, a autora desenvolve melhor a diferenciação entre jogos que valorizam o gameplay e a rápida resposta ao jogador (usando os first persons shooters) enquanto contrabalanceia com exemplos de jogos lentos e intrincados, valorizando narrativa e resolução de enigmas, como Myst e Tomb Raider.
A autora usa então uma citação de Bakhtin sobre o romance grego para adaptar o conceito de cronotopo como algo que funde a questão de espaço-tempo na narrativa. Demonstrando depois que tanto no romance grego como nos jogos digitais, o protagonista passa por diversos obstáculos e conflitos para avançar na história e atender seus objetivos. O restante da subseção do artigo a autora utiliza para desenvolver melhor essa associação do cronotopo grego para os jogos narrativos.
Shenmue e a sofisticação do cronotopo
Nos primeiros parágrafo a autora se dispõe a descrever a introdução e o enredo principal do jogo, esclarecendo o uso do full motion video para apresentar o conflito principal da trama e um pouco de Ryo, o herói principal e personagem controlado pelo jogador.
A narrativa no espaço unificado
Finalmente a autora descreve o caráter único do jogo, que é a interação com todos os objetos do jogo, diferenciando assim dos jogos narrativos anteriores (como myst) que são bastante restritivos. Essa interação com objetos e pessoas no ambiente faz com que o jogo se pareça muito mais dinâmico.
A autora destaca em como é trabalhoso o detalhamento dado pela equipe de desenvolvimento ao fazer com que todo o universo do jogo seja responsivo ao protagonista. Os objetos não respondem unicamente para mover a narrativa ou manter o personagem dentro da história, mas por uma ótica que tenta ao máximo reproduzir a realidade. Fazendo com que o ambiente do jogo seja muito mais atmosférico e imersivo que o habitual.
A unidade de ação e a complexidade motivacional
Nessa unidade a autora trabalha o desenvolvimento motivacional do personagem Ryo na trama do jogo. Em contraposição com os adventures antigos, onde o ínicio e o fim do jogo podem ser ligados sem maiores problemas, todo o desenvolvimento do personagem faz parte de uma jornada interior.
A autora então dá um exemplo do paradoxo narrativo criado pela dissonância narrativa quando o jogador se vê frente ao dilema moral e amoroso de Ryo com a personagem Nozomi, que faz um interesse romântico no jogo do qual o jogador não pode interferir em seu desfecho trágico.
Outro exemplo dado pela autora é na passagem do tempo dentro do jogo, que acompanha com o jogador ao passo que 5 minutos reais passam por uma hora no jogo. Em uma ação durante o dia de trabalho de Ryo, sabemos que a gangue de motocicleta que ele está investigando irá se reunir a noite no cais. E o interator (jogador) não tem outra escolha senão esperar o tempo passar, usufruindo de algumas tarefas mundanas disponibilizadas no jogo.
O artigo termina então dizendo que apesar de almejar complexidades narrativas além de seu tempo, o jogo esbarra nas mecânicas próprias da época e acaba não atendendo sua premissa original, mas que porém, abre portas para novas mecânicas e experimentações na indústria.
Parte III – Games e estética
Essa seção trata do aspecto artístico dos jogos e uma teorização acadêmica sobre o assunto. Dessa seção eu fiz o fichamendo do artigo de “Jim Andrews chamado: “Videogames como dispositivos literários” que faz análise sobre alguns art games, jogos com pretenção artística que fogem um pouco do conceito de jogo, eu fiz um artigo sobre art games, para conhecê-los, clique aqui.
Fichamento de Jim Andrews – Videogames como dispositivos literários
Nesse artigo, Andrews usa alguns exemplos de jogos artísticos e tenta caracterizá-los como dispositivos literários. Ele pega definições pré concebidas de dispositivos literários e narrativas, mas a definição que ele faz da narrativa de um jogo eu particularmente acho muito útil.
“A característica básica dos jogos é que eventos, em uma estrutura/mundo (geralmente imaginário), são gerados por meio de algum mecanismo (jogar dados, por exemplo, ou mover), e esses eventos são interpretados e fazem sentido no mundo do jogo. Cada evento introduz mudança no mundo do jogo para que o jogador reaja, o que constitui o próximo evento.”
(ANDREWS in SANTAELLA E FEITOZA, 2009 pg. 27)
A intenção de Andrews nesse artigo é mostrar como que artistas usaram art games para criar complexos dispositivos literários, dando exemplo três jogos analisados separadamente.
The Intruder, de Nathalie Bookchin
Feito de forma a satirizar os jogos digitais, Bookchin utiliza 8 jogos clássicos de videogame para fazer uma apresentação em forma de peça numa espécie de adaptação do conto “A Intrusa” de Jorge Luis Borges. O autor demonstra que Bookchin pretende associar a natureza competitiva do jogo com a personalidade violenta dos irmãos e ela, como mulher, é a “intrusa” como no conto.
Na obra, os jogos servem como único propósito como dispositivo narrativo para avançar e completar a história. Andrews interpreta a criação de Nathalie como uma crítica ríspida a predominância masculina na indústria de games.
Olhar Axolotes de Regina Célia Pinto
Assim como a obra de Bookchin, Regina Célia Pinto também cria uma peça interativa como adaptação de um conto (de outro escritor latino proeminente do realismo fantástico, um ponto que Andrews ignora). O autor resume o conto de Julio Cortazar, que fala sobre um humano obcecado pelos Axolotes que acaba se tornando um.
O autor define então que o cerne do conto é tratar dos limites e natureza da imersão narrativa. Algo que a autora do jogo tenta transparecer a seu modo, numa mídia interativa. Assim, o autor trabalha com a ideia de imersão em games, tomada como literal mas que deve se manter figurativa.
Andrews encerra sua análise apontando que o jogo de Regina é ainda menos jogável que The Intruder, sendo uma atividade lúdica e poética. Reforçando a ideia de usar o jogo como dispositivo literário.
Pac Mondrian de Neil Hennessey
Pac Mondrian é um “mashup” entre a pintura modernista de Mondrian chamada Broadway Boogie-Woogie e o jogo Pac-Man, onde o personagem percorre os traços da obra de Mondrian enquanto toca-se boogie woogie (gênero de música próximo ao jazz) de fundo. Ao contrário do uso figurativo dos jogos em “Olhar Axolotes” e na total subordinação da arte em “The Intruder”, essa obra traz uma perfeita harmonia entre o jogo e a pintura.
A obra pode ser vista também como um implemento de Mondrian para alguém desinteressado em arte, mas aficionado por jogos. O exercício de experiência da obra pode levar o jogador a uma consciência de interligação entre artes e jogos, e uma leitura diversificada da obra de Mondrian, bem como sua relação com Manhattan.
Arteroids: Dispositivos gêmeos
Agora Andrews faz a resenha de seu próprio jogo (que teve tradução para português de Regina Pinto) que é uma adaptação de Asteroids do Atari para a poesia, onde o jogador atira em palavras. O jogo se divide em dois modos, um focado mais na criação de poesias e outro ligado mais ao prazer do jogo por si só.
O autor encara que poesia e jogo tem um conflito insuperável e justamente na exploração desse conflito que ele decide explorar. Ao tentar tanto trazer uma carga poética e artísticas aos jogos, como modernizar a poesia para os tempos modernos, além de apenas “migrar do impresso para o digital”.
Conclusão
O livro ainda tem dois capítulos chamados: “Games e Mediações Culturais” com artigos que abordam o aspecto social e cultural dos jogos e “Games e Educação” onde aborda o ensino universitário voltado a jogos. Eu não usei nenhum dos artigos presentes nesses capítulos, mas para quem tem interesse no assunto vale bastante a leitura.
Mapa do Jogo é uma coleção de artigos fundamentais sobre o estudo de games e quem se interessa no estudo acadêmico dessa mídia, é uma aquisição obrigatória. Espero que tenham gostado dos meus fichamentos e que eles tenham sido úteis em suas pesquisas.