Início Reviews e Guias O Irlandês me fez temer a velhice

O Irlandês me fez temer a velhice

1732
0
COMPARTILHAR
O Irlandês me fez temer a velhice

Fazia pelo menos dez anos que esperava com ansiedade pelo lançamento de O Irlandês. Fui um fã inveterado de Robert de Niro desde a infância devido a devoção de meus pais ao ator por filmes como Coração Satânico e Poderoso Chefão.

Paixão essa renovada quando descobri Cabo do Medo e os Intocáveis. Até as comédias românticas chulas que De Niro fora arrastado como “Entrando numa Fria” e “Máfia no Divã” pareciam engrandecer ante sua presença. Era como se o ator tivesse uma aura que o protegesse do fracasso.

Foi quando minha jovem mente pôde se aprofundar na dimensão que era a parceria do ator com o diretor Martin Scorsese que pude contemplar o poderio da dupla. Descobri os “Bons Companheiros”, “Cassino”, “Taxi Driver”… parecia que a parceria entre os dois era simplesmente perfeita. E foi mergulhando nesse mundo mafioso que “re” conheci Joe Pesci.

Joe Pesci, de Goodfella para bandido molhado

Não é novidade para qualquer pessoa que crescera nos anos 90: Todos irão lembrar de Pesci no seu papel em “Esqueceram de Mim” como um dos bandidos molhados, ou como o baixinho irritante de “Máquina Mortífera”. Vê-lo nesses filmes de máfia como uma pessoa a ser temida, o verdadeiro capanga explosivo que pode surpreender a todo momento foi uma experiência única.

Hoje gosto de imaginar um passado “scorcesco” para o Pesci no clássico natalino. Uma vez que o personagem é forçado a fugir de Las Vegas para Chicago, adota um nome medíocre como Harry e passa a viver de pequenos crimes como um mendigo nos subúrbios de Illinois.

A situação fica ainda mais deprimente quando o personagem tem de fugir novamente para NY na sequência após falhar em roubar uma única casa por causa de uma criança. Karma é mesmo uma parada muito triste.

Eu sei que estou me alongando demais em apenas recitar boas memórias e grandes obras do cinema contigo, meu leitor. Espero que você também esteja se divertindo em remexer nessas lembranças. Mas eu juro que tudo isso irá se explicar mais pra frente. Ah! Falta falar do Al Pacino… bem, você já assistiu Scarface, então não é necessário falar mais nada.

Dreamteam de filmes de máfia

Eu, e todo ser humano que nutre algum sentimento por filmes de máfia, ficamos atônitos quando descobrimos que Scorsese iria revitalizar sua laboriosa parceria com De Niro. Após uma longa sequência de filmes com outro ítalo americano, Leonardo DiCaprio. Seria OUTRO filme de máfia, COM Joe Pesci e COM Al Pacino, era simplesmente bom demais para se imaginar.

 

Ao contrário de Pesci e Niro que se encontraram diversas vezes nas telonas (geralmente em filmes do próprio Scorsese), Pacino e Niro co-estrelaram apenas três filmes, raramente dividindo cenas. Com o anúncio do projeto, a expectativa estava nos limites! Poderíamos ver as atuações energéticas de Al Pacino e Joe Pesci no mesmo filme, a tensão seria enlouquecedora, O filme de máfia com os maiores nomes do gênero envolvidos, o evento da década!

E o resultado foi um pouco… desapontador.

O Irlandês lidando com expectativas

Espere, não, isso não está certo. O Irlandês é um excelente filme. Diálogos afiados, a precisão cinematográfica de um diretor experiente, a segurança de atores consagrados nos papéis que representaram a vida toda. Três horas e meia de um filme com as melhores convenções do gênero com uma pitada de espionagem política!

Mas algo estava errado, ao menos pra mim. Esperava a todo minuto que seria tragado para a narrativa de forma avassaladora. Que sonharia com os dilemas dos personagens durante semanas, teria de pausar o filme diversas vezes para poder recuperar meu fôlego em meio a tensão sufocante de uma trama complexa… Mas pausei pois minha namorada já roncava ao meu lado e eu mesmo me encontrava ébrio pelo sono.

Em nenhum momento eu considerei o filme chato (ela sim), fiquei admirado com as performances dos atores. Dava pequenos sorrisinhos a cada linha de diálogo decisiva. Entretanto, a sensação era que eu observava um jogo decisivo de xadrez, não uma trocação sincera de boxe onde a disputa de cinturão estava em jogo. Toda aquela explosão e energia que nos acostumaram em Bons Companheiros e Scarface não existia aqui, e por que?

Porque os atores estão velhos.

A velhice como tema em O Irlandês

Assim que essa ficha finalmente caiu, toda a experiência do filme mudou. O filme se tornara um grande terror psicológico onde o mal invisível que espreitava nas sombras era o da terceira idade. Havia anos que não via Joe Pesci, que já não era um exemplo de juventude nos anos 90, TRINTA ANOS DEPOIS a situação era ainda mais devastadora.

Os péssimos efeitos de rejuvenescimento de De Niro nas cenas de flashback (uma aula que Scorsese poderia tomar com a Marvel que ele tanto critica) também acentuavam essa terrível sensação.

Aqueles atores que eu cresci assistindo em filmes de máfia agora estavam idosos e cansados, e uma voz ecoava sorrateiramente na minha cabeça: “acontecerá o mesmo com você”.

Uma pequena resenha de O Irlandês

Falando finalmente sobre o enredo da obra, assistimos a longa caminhada do protagonista dentro da máfia italiana. Começando como um mero entregador de encomendas e se aposentando como um hitman experiente que se afasta após por fim em um figurão da política (estou tentando não lidar com spoilers).

Os filmes de máfia, principalmente os dirigidos por Scorsese, nos treinaram a esperar a ascensão e queda dos nossos protagonistas.

Um zé ninguém entra na máfia, consegue prosperar devido ao seu jeito único de lidar com as coisas (seja coragem, seja um forte código de honra) e acaba sendo engolido pelos mesmo valores que o levantaram, uma tragédia grega no seio de um bang bang macarronesco.

Portanto, esperamos a todo momento qual seria a ruína de Frank, principalmente quando é pedido que ele execute um contrato de assassinato. Qualquer pessoa que já buscou defender o amigo de profissão numa situação de risco que o mesmo trazia para si, pode se identificar com Frank nesse momento.

Ele tenta de toda forma defender seu amigo, ao mesmo passo que tenta convencê-lo a porra da boca e jogar o grande jogo. Não funciona, e a perversidade de toda situação é que vem de Frank a execução do seu grande amigo.

“É agora” você espectador fala consigo mesmo. Essa será a ruína do personagem. Este é o momento scorsesco em que Frank irá se afogar num mar de intrigas diversas. Será esse o momento em que o personagem é posto à prova, esperamos ansiosos pela punição narrativa de Frank por ter executado seu amigo.

Porém, a punição não vem.

Um final pior que a morte

Ao menos não de imediato, Frank prossegue com as convenções de gênero, se mantém fiel a família da máfia e a única punição que parece acometer o personagem é o distanciamento de sua filha que idolatrava o tio Jimmy, e logo entendemos qual será sua punição.

Frank é condenado a ver sua família de sangue se afastar lentamente e observar seus amigos mafiosos morrerem lentamente, não por uma gangue violenta, ou por órgãos públicos corruptos sedentos por vingança, mas pela constante ameaça da morte natural pela idade.

Resta a Frank uma velhice isolada. Confrontada por um investigador que é mais um “homem do governo” ansioso por apenas encerrar seu caso. Assim como você termina um relatório numa sexta feira de calor, que ainda exclama com seu antagonista: “todos estão mortos, você não precisa defender a mais ninguém”.

Vemos por fim uma pessoa derrotada pela idade, envelhecendo sozinho na véspera de natal num asilo onde só lhe restou um improdutivo flerte com enfermeiras. Uma velhice saudável assombrada pela última lembrança de um amigo morto por suas mãos.

E esse é um final ainda mais trágico que a morte de Pesci, que assiste seu irmão ser espancado por tacos de baseball em Cassino.

“Não feche a porta completamente, eu não gosto disso. Deixe-a entreaberta”

Confira meu artigo sobre a estética neo-noir das séries da Marvel na Netflix
https://historiadorgeek.com.br/index.php/2016/02/26/a-estetica-neo-noir-nas-series-marvelnetflix/

Facebook Comments