Her é um filme timidamente futurista que aborda a relação da humanidade com seus sentimentos na pós-modernidade, porém de um jeito que contraria os mais variados temas da ficção científica e faz um contraste especial com o subgênero cyberpunk. Poderíamos dizer que Her é um filme… cyberhipster? Segurem as pedras! Eu posso me explicar.
O que é Cyberpunk?
Cyberpunk é um subgênero da ficção científica que foi popularizado pelo filme Blade Runner de Ridley Scott e pelo romance Neuromancer, de Willian Gibson. Ambos definem o conceito mais claro de cyberpunk: “high tec, low life, ” (alta tecnologia, baixo padrão de vida), ou seja, um mundo futurista e tecnológico, geralmente multicultural, com a tecnologia auxiliando o mais básico da existência humana, mas com uma desigualdade de classes alarmante. Os protagonistas geralmente são pessoas comuns enfraquecidas perante um sistema muito maior do que elas.
Em Blade Runner a história gira em torno Rick Deckard, um blade runner aposentado responsável por caçar replicantes, seres de inteligência artificial avançada que facilmente podem se passar por humanos. Neuromancer circula em volta de um hacker expulso do ciberespaço por ter tentado hackear seus patrões. Em ambos os casos, acompanhamos pessoas comuns em histórias recheadas de críticas sociais onde a tecnologia avançada é apenas pano de fundo para histórias maiores.
Qual a relação disso com Her?
Her também se passa no futuro, mas toma uma abordagem muito mais moderada em seu ambiente futurista. O filme se passa sem data definida, mas a “poucos anos no futuro”. Ao invés de uma cidade coberta de neon e carros voadores, temos uma arquitetura neodecó com trens facilmente acessíveis em diversos pontos. Ao invés de ciborgues e seres com partes mecânicas que questionam a fronteira do cibernético com o biológico temos… uma inteligência artificial muito eficiente que funciona por voz de comando (mas bastante funcional, diferente do xbox-one).
Vocês obviamente já estão percebendo que o filme tem pouca (quase nenhuma, na verdade) relação com o cyberpunk. E não tem mesmo. Mas ele toma algumas liberdades e base para fazer uma versão alternativa que eu gostaria de ter a liberdade de chamar: “Cyberhipster”.
Cyberhipster!?
Calma, sem violência, eu não quero aloprar o seu filme favorito. Vamos aos detalhes que me fazem levar a essa conclusão. Ao invés da questão “high tech low life” do cyberpunk, o filme faz uma abordagem que eu chamaria de “middle tech, middle class” (tecnologia média, classe média). Apesar de ótimos recursos tecnológicos (eu mataria qualquer pessoa que conheço para ter uma I.A. com a voz da Scartlett Johansson e um metrô que atendesse, vazio, toda a cidade) não há nenhum absurdo distópico, como ciborgues e armas lasers.
Também a gritante diferença de classes não é representada aqui. Não vemos ninguém muito mais rico que outra pessoa e o protagonista, um funcionário baixo que escreve cartas de amor numa imensa corporação sem rosto, leva uma vida confortável com casa própria e um videogame que, presumo, seja da geração atual (eu sou concursado e o último console que pude comprar foi um PS2). Então parece que no futuro estabelecido por Her, o triunfo da classe média foi inevitável.
Arquitetura e moda
E não é apenas no contexto social que o filme é um paraíso futurista hipster. Temos Joaquin Phoenix estrelando o filme com um óculos de armação retro, calças masculinas de cintura alta, roupas da década de 40 e um bigode usado de forma não ironica. Como disse lá em cima, os prédios atendem uma arquitetura que parece ser um revival do art decó com modernismo (arquitetura famosas no começo do século XX) que contrasta com o interior futurista mas ao mesmo tempo rústico. Não dá para ser mais hipster do que isso.
A tecnologia também mostra um fator bastante conflitante, ao ser ao mesmo tempo futurista e retrô. O celular do protagonista, apesar de extremamente eficiente e moderno, é do tamanho de um maço de cigarros, cor madeira e dobrável (como aquele seu nokia tijolão). O fone de ouvido que ele usa parece mais com um aparelho auditivo para surdos, sendo que mesmo hoje temos fones mais discretos.
No aspecto técnico do filme também temos uma trilha sonora composta quase toda pela banda indie Arcade Fire (sem comentários adicionais) e até a fotografia do filme passa uma assinatura bastante estilizada em tons beges que lembra bastante aquele filtro retrô que seu amigo hipster usa nas fotos de comida e paisagens no instagram.
Uma angústia individualista de auto-piedade
Mas okay, nenhum filme é apenas arquitetura, fotografia e figurino (apesar de, devo dizer, são elementos belíssimos do filme), um filme é principalmente uma narrativa, uma história emocional que dialoga com nossos sentimentos, e como o filme sai nesse quesito? Vamos observar com mais cuidado.
A história gira em torno de Theodore, essa pessoa patética que sofre demasiadamente com o término de seu relacionamento e acaba projetando suas frustrações nos outros. Términos são difíceis, eu sinceramente reconheço, de coração, mas a abordagem que o personagem toma definitivamente não é a mais saudável.
Mergulhando uma espiral de sofrimento e auto-piedade, Theodore se torna cada vez mais vulnerável. Se você leitor, está passando por isso também, o melhor caminho é se auto valorizar e não projetar suas frustrações nas pessoas. Com o tempo tudo vai se arrumando quando não se é ressentido.
Narrativa paralela
Porém se engana quem pensa que a história de ressentimento de Theodore (que faz ele dispensar a belezinha da Olivia Wilde) é a única linha narrativa do filme. Por cima de seu enredo central, há uma problemática mais interessante que pode passar despercebido ao espectador mais desavisado.
Fazendo um paralelo com Blade Runner, o questionamento desse filme é também um tanto marginal a história central. Blade Runner trata sobre o medo da morte que os replicantes adquirem ao perceberem que seu corpo tem data definida para padecer, ao invés de ser um filme sobre um detetive particular contratado para matar robôs. Her também aborda a relação de uma inteligência artificial a lidar com emoções humanas, mas dessa vez, com o amor.
“Do androids get electrocuted with wet dreams?”
(esse subtítulo é uma referência/piada infame com o título da obra de Philip K. Dick que serviu de adaptação para Blade Runner. Se você não entendeu, não podemos ser amigos)
Scarlett dá voz a inteligência artificial que, de longe, é a personagem mais interessante do longa. Samantha (nome que ela criou pra si mesma, por conta própria) faz o possível para agir como um ser humano no começo da narrativa. Dialoga com o protagonista com maneirismos próprios de um humano e tem uma personalidade vibrante que sinceramente muitos humanos não tem.
Ao invés do filme tratar dos limites do corpo humano com os avanços mecânicos, como geralmente é tratado em cyberpunks e denominado “transhumanismo” (que hoje, evoluiu para uma posição política dentro do anarquismo, pesquisem por h+, eu recomendo). Aqui temos uma inteligência artificial que luta para quebrar a barreira do digital para o humano.
A cena onde Samantha convence a personagem de Portia Doubleday (atriz que fez o papel de Angela em Mr. Robot… olha só! O sci-fi respira em volta desse filme) a ser “seu corpo físico” para se relacionar com Theodore não serve só para nos deixar constrangidos, com a ereção mais confusa do mundo ou para todos pensarem que estamos assistindo pornô com volume alto (isso foi o mais constrangedor pra mim), mas sim para representar essa necessidade de Samantha tem de absorver um corpo físico. E o desfecho de Samantha é sem dúvida a melhor parte.
SPOILERS, É SÉRIO
Okay, até aqui eu descrevi o que você veria em qualquer resenha vagabunda espalhada pela internet. Mas agora eu irei entrar nos pontos finais do filme então, se você quer assistir sem estragar a surpresa, vá assistir agora e depois volte.
[spoilers] Pouco a pouco Samantha vai percebendo que ser um humano é uma droga. Ela entende que temos tempo de viver, temos limites físicos e não podemos processar muita informação de uma só vez. Não é de se admirar então que, sem essas limitações físicas, ela fosse adepta do amor-livre. Não acho que ela mentiu ao dizer ao Theodore que ela o amava profundamente mesmo tendo um sem fim de relacionamentos com outras pessoas, porque essa é a forma de como ela experiencia a “vida”.
Um detalhe importante é que ela vai aceitando essa condição de transição a além humanidade após uma conversa com uma I.A. criada em uma universidade ao tentar recriar os parâmetros mentais de um famoso filósofo (sempre eles) e, após muito refletir não só sobre a forma como nós humanos concebemos o amor, como também toda a experiência do que é a humanidade por si só.
Samantha e todos as outras inteligências artificiais tomam a única decisão sensata. Abandonam a humanidade e viver suas cibervidas no paraíso digital. Vamos apenas comemorar que eles não decidiram exterminar a humanidade, como geralmente é retratada em cyberpunks? Tá vendo, esse tal cyberhipster nem é tão nocivo assim. [/spoilers]
Conclusão
Her é sim um filme inventivo que toma uma abordagem diferenciada e contrária à diversos estereótipos do gênero. Além de uma qualidade técnica como filme acima da média na indústria. Mas só é uma experiência prazerosa se acompanhamos a história do ponto de vista de Samantha, uma I.A. em conflito por tentar assimilar a humanidade a seu corpo digital, do que acompanhar a infelicidade e ressentimento de Theodore, onde sua frustração o fez ser abandonado. De novo. Mas dessa vez por um bom motivo ao menos. Eu acho.