Borat volta em uma sequência após 14 anos! Gravada completamente na surdina e com cenas ainda mais escandalizantes que seu primeiro filme, Sasha Baron Cohen mergulha no caos político atual e na crise pandêmica do coronavírus.
Me acompanhe nessa jornada através da carreira de Sasha Baron Cohen, a construção de seu personagem repórter do cazaquistão, e a pergunta se realmente precisamos de um novo Borat em 2020. Mas antes, vamos rever um pouco como era a vida no lançamento de seu primeiro filme.
Mockumentary, ou pseudosdocumentários
É difícil explicar para a geração Z, o sucesso do gênero no começo deste século. O gênero “pseudodocumentário” (conhecido como “mockumentary” na língua inglesa) já existia. “This is Spinal Tap” lançado em 1984, acompanhando o dia a dia da banda fictícia que nomeia o filme, é frequentemente lembrado como referência do gênero.
Mesmo A Bruxa de Blair, em 1999 usaria de alguns elementos de um pseudodocumentário para adicionar uma cada de realismo em seu estilo de found footage com terror. Gênero que não estreou, mas que voltou renascido desde o terror italiano “Holocausto Canibal” de 1980.
Documentários políticos
Documentários, desta vez reais, que abordavam temas políticos e críticas ao modo de vida americano, com boa doses de humor irônico e sarcástico, também eram bastante comuns naqueles tempos.
Michael Moore teria emplacado dois grandes sucessos: “Tiros em Columbine”, lançado em 2002 e falando sobre a relação de violência dos EUA com a cultura de armamento popular, e Fahrenheit 9/11, ligando Bush aos atentados de 11 de setembro. Outro documentário “politizado” que fez sucesso fora “Super Size Me” (2004), comentando sobre os vícios alimentares na cultura americana.
O momento histórico
Muito do entretenimento da virada do milênio circulava numa possível queda do sonho americano. A década de 00 (?) tinha uma visão mais sarcástica que a década anterior, mais niilista. Podemos comparar como os filmes tal qual Matrix, Beleza Americana e Clube da Luta (todos de 1999) mostravam um tédio com a vida normal.
Porém, com os primeiros anos do que seriam o duplo mandato de George W. Bush, e a retomada dos conflitos no oriente médio. O clima estagnado da cultura americana volta a ecoar um discurso mais conservador, bélico e até mesmo xenofóbico.
E com essa mudança de “establishment” que surgiria esse efeito perfeito para uma abordagem mais descarada e debochada na sátira política. Ambiente próspero para o trabalho de Sasha Baron Cohen.
O começo de tudo
O personagem de Sasha nasceu entre tantas outras caricaturas do seu programa chamado Da Ali G Show. O programa é formado por uma fórmula satírica de jornalismo com entrevistadores caricatos e estereotipados, todos representado por Cohen, de forma a trazer uma narrativa irônica as entrevistas e estampar a hipocrisia das pessoas que entrevistava.
Ali G, o personagem que nomeia o show, é o que na Inglaterra é conhecido como “chav”. Jovens da cultura inglesa que mesclam estereótipos jamaicanos, da classe baixa inglesa e apropriações da cultura hip hop. Com seu jeito debochado e casual, já chegou até a entrevistar e propor um modelo de negócio a Donald Trump, que não suspeitava da furada.
Brüno, outro personagem de Sasha, é um repórter gay austríaco que usa de seus trejeitos exagerados e seu conhecimento de moda para escancarar a homofobia de seus entrevistados, ou a superficialidade do mundo da moda. Mas o destaque deste artigo, vai para seu terceiro personagem.
A criação do personagem Borat
Antes de comentar sobre o personagem, vale lembrar a polêmica de a persona de Borat era, na verdade, plagiada do perfil real de relacionamento do turco “Mahir Cagri”. Acusações desmentidas após provas que o personagem existiu dois anos antes sob o nome de Kristo Shqiptari. Porém a recriação do personagem no novo nome, dividiu várias semelhanças com o turco. Como as preferências por bigodes, ternos bregas e jogar pingue pongue.
No programa de Ali G, Borat não era tão politizado como seria em seu próprio filme. Ainda que as irônicas piadas machistas e anti semitas já existissem, os destaques iam para o abismo cultural do fictício Cazaquistão de Borat, um abismo comparado ao Cazaquistão real, com os EUA. As entrevistas serviam de modo a testar o respeito por estrangeiros e despertar a xenofobia dos participantes.
Entre esquetes com sommelieres de vinho e com uma coach para sites de relacionamentos, vemos o repórter cazaque fazendo um especial sobre democracia. E ao acompanhar um candidato republicano caçando votos pelos subúrbios americanos, que vemos o verdadeiro potencial do personagem.
Borat – O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão
Como parte do que viria a ser a “trilogia de Ali G Show”, onde cada personagem teria seu próprio filme, Ali G foi o primeiro ao ganhar seu longa em 2002. Porém o formato se diferenciava muito da pseudo reportagem da qual fora famoso. Foi só com Borat em 2006 que o pseudodocumentário ganharia forma.
No filme, Borat é encaminhado aos EUA por mando de seu governo, de forma a aprender com a “grandiosa” cultura americana e trazer esse conhecimento ao seu país de origem. Entre reuniões com feministas, uma paixão por Pamela Anderson e uma road trip extensa entre Nova York e Califórnia, passando pelo sul americano. Borat escancara a hipocrisia americana por vezes usando da ironia kierkegaardiana.
Ao discursar no começo de um rodeio, Borat é aclamado ao fazer um discurso inflamado, agressivo e abertamente racista. Mas é retirado do palco sob vaias ao cantar o fictício hino de seu país na melodia americana.
Em um jantar de alta classe, todos seus maneirismos e trejeitos selvagens são perdoados e vistos com doçura, até o momento em que ele chama uma suposta garota de programa negra para a festa.
A calorosa recepção
O filme foi um sucesso de crítica e bilheteria, ficando em primeiro lugar nas bilheterias em sua estreia e recebendo diversas indicações nos mais variados festivais de cinema. Como dito no começo do texto, todo o ambiente de começo de século já favorecia o longa.
Esse humor ácido e irônico iria satisfazer o público já acostumado com o trabalho de Cohen. Já o humor escatológico e brutal de Cohen, conseguiu também embarcar um público mais simples, fãs de comédias mais físicas e menos politizadas que também eram sucesso na época.
Algo notável na recepção do filme foi a vergonha dos que se sentiram “enganados” pelo falso documentário. Diversos processos e pedidos para retirada de pessoas presentes no longa se acumularam. Uma exceção foi o casal de judeus, que se orgulhavam de sua participação e acharam o filme engraçado.
Uma trégua com a política
Findado o que fora chamado como “Era Bush” (2001 – 2009), Cohen se distanciou um pouco de comédias políticas na era Obama (2009 – 2017). Sua exceção seria em O Ditador (2012), filme que critica o apoio americano a ditaduras no oriente médio, mas que ainda sim tem uma mensagem positiva de inclusão e reforma política.
No entanto, não é como se o produtor e ator estivesse desocupado. Sasha participou de grandes produções como Hugo (2011), as sequências de Anchorman (2013) e Alice criada por Tim Burton (2016) além da icônica representação do Rei Julien em Madagascar.
Foi com a nova onda conservadora, populista e escrachada espalhada não só nos EUA, como no mundo todo, que colocaria Cohen de volta ao satirismo político.
Who is America
Who is America (2018) parece uma versão de seu primeiro programa, ainda mais voltada a sátira política. Com personagens completamente novos para poder, novamente, atuar sem ser reconhecido pelas suas “vítimas”, Cohen tem a sua disposição um quadro variado de figuras para fazer suas críticas.
Com Erran Morad, agente do Mossad especializado em antiterrorismo e Billy Wayne, um direitista radical e divulgador de teorias da conspiração. Cohen cria e explora personagens exagerados para atacar conservadores, mas eles não são as únicas vítimas de sua sátira.
Dr. Nira Cain é um esteriótipo da esquerda americana “tolerante” que perdeu o tato com a realidade do mundo e com as pessoas que eles dizem “proteger. Já “OMGWhizzBoy” é um comentário sobre como personalidades digitais servem discretamente como propaganda fascista.
Mais do que isso, Who is America serviu como perfeita desculpa para aplicar o golpe publicitário e satírico mais bem elaborado da recente história do gênero.
A sequência de Borat
Muito diferente da realidade de 2006, Sasha Cohen e seu personagem mais famoso estão longe de permanecerem irreconhecíveis ao público americano. Assim como este assunto é abordado já no começo do longa, o personagem percebe necessário se fantasiar de outros personagens para passar despercebido, criando uma cadeia metalinguística de disfarce sobre disfarce.
Outra dificuldade foi como dar sequência às gravações, em segredo, num mundo completamente conectado onde todos têm smartphones com câmeras poderosas e conexão de qualidade?
Pequenas “peças” de Cohen que mais tarde foram para o filme apareceram na mídia. Como a apresentação musical abertamente racista e a invasão da conferência conservadora (CPAC) vestido de Trump tendo, nos ombros,a atriz que iria fazer sua filha no filme.
Ambos casos passaram despercebidos pensando-se, talvez, serem parte de um quadro de “Who is America”.
Gravação em meio a pandemia
Outra “adversidade” que iria pôr à prova a criatividade e adaptabilidade do comediante foi a eclosão da pandemia do coronavírus. Que acabou mudando o enredo total do filme e criando um segmento inteiro improvisado onde o personagem residiria com dois manifestantes anti vacina por cinco dias.
Dessa forma, tal experiência rendeu Sacha a impossibilidade de sair de personagem durante toda a estadia. Dormindo e acordando na casa de estranhos mantendo seus maneirismo de modo a não despertar a desconfiança de seus anfitriões.
Naturalização da estupidez
Talvez a diferença mais clara entre os dois filmes é como as coisas mais absurdas são aceitas e até incentivadas pelos participantes do filme. Ao encomendar uma jaula para sua , o vendedor age naturalmente aos pedidos mais insanos de Borat. Eventualmente sugerindo um tanque de propano maior para sufocar um número grande de ciganos num trailer.
Uma confeiteira não hesita um só segundo ao escrever “judeus não vão nos substituir” em um bolo. Um homem dá o valor de 500 dólares pela filha de Borat em sua festa de debutante. A resposta natural de “até que cor é atrativa para uma família racista” num estúdio de bronzeamento.
Mas o show de horrores fica com o médico e pastor que se recusa a permitir o suposto aborto da filha de 15 anos de Borat, que supostamente teria engravidado do pai em segredo e sem consentimento.
Uma estrela em ascensão
É fácil falar da facilidade de Sasha tem em improvisar com seus personagens icônicos e irrealistas. Sua experiência com esse tipo de performance foi comum em toda sua carreira desde a década de 90.
Contudo é Maria Bakalova, atriz búlgara de 24 anos, que provou ser bastante convincente em seu personagem nas situações mais extremas. Escolhida a dedo por um rigoroso processo de seleção, onde as atrizes tinham de se enturmar em um grupo por horas, de modo a convencer desconhecidos que elas eram de fato as personagens que deveriam ser.
Bakalova tem experiência em grandes produções de seu país natal, mas a sequência do longa foi sua primeira estreia no cinema mundial.
Reação dos traídos
Eventualmente lançado o filme e suas “vítimas” perceberem que foram motivos de piada, suas declarações começaram a se espalhar pela internet. Rudy Giuliani, ex prefeito de NY e aliado de Trump é o que tem sua imagem mais prejudicada. Levando a crer que faria sexo com uma jornalista menor de idade após consumirem bebidas alcóolicas.
Uma reação que refletiu diretramente o casal de judeus do primeiro filme foi a de Judith Evans, judia sobrevivente do holocausto. Em uma rara ocasião onde Sasha confessa a artimanha, a entrevistada se mostra encantada de participar da “brincadeira”. O filme tem uma homenagem póstuma a Judith, que morreu antes do lançamento oficial.
Jerry Holleman e Jim Russell, os dois rednecks conspiracionistas que abrigaram Sasha durante cinco dias, ainda não se manifestaram sobre sua presença. No entanto a reação mais confusa foi da influencer “Macey Chanel” que disse ter sido enganada pela produção, mas ainda se orgulhar do papel no filme. Ao mesmo tempo que ajudou na promoção do mesmo em seu site pessoal e redes sociais com link para o longa.
A sequência de Borat que precisávamos?
Sacha Cohen não se acanha em demonstrar sua inclinação e motivação política. Como por exemplo ao encerrar o filme com um chamado para que o público americano venha a votar nas eleições que iniciaram pouco depois da estreia do filme. Ao passe que insistiu para que o filme fosse lançado ainda este ano justamente para este fim.
O humor escrachado e politizado é justamente o que tanto precisávamos nesses tempos obscuros e incertos.