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Por uma definição de Survival Horror nos jogos digitais

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Por uma definição de Survival Horror nos jogos digitais

O que seria, quando aconteceu e qual seria uma precisa definição de Survival Horror? Frequentemente essa pergunta parece pipocar em discussões sobre horror nos jogos digitais.

Fazendo a série de postagens sobre uma breve história do horror nos jogos digitais publicado no Facebook e Instagram (dá uma conferida lá que tá muito interessante), a vaga definição de survival horror me assombrou bastante. Como definir com precisão esse gênero digital, é possível criar uma teoria videoludológica?

O problema da interpretação literal

Uma pergunta que parece simples, vai se desdobrando em pequenas problemáticas. Por que não usar uma interpretação literal do termo? Por exemplo, por que não considerar como parte do gênero, qualquer experiência de terror aliado a narrativa de sobrevivência? Nesse sentido, tão cedo quando existe uma narrativa de terror nos jogos, desde já existe o horror de sobrevivência.

Porém, acontece que a ideia de sobrevivência é algo presente quase que na totalidade de narrativas de horror, visto que parte da tensão e experiência de terror é a capacidade de sobreviver a uma ameaça externa. Por isso eu considero que a interpretação literal do termo para o gênero é um deserviço. Uma saída preguiçosa para o problema.

O caso RPG

Frequentemente acontece algo parecido ocorre na classificação dos RPG (Role Playing Game, geralmente traduzido para jogos de interpretação de papéis). Gênero que nos jogos digitais nasceu se desmembrando lentamente dos adventures e influenciado, é claro, pelos RPGs de mesa (tabletop RPG, ou pen and paper RPGs).

Existia um conceito bastante claro de RPGs até a virada do milênio, porém com vários jogos de ação e aventura adquirindo cada vez mais conceitos chave dos RPGs (como sistema de experiência, especialização e classes). Ao passo que hoje, exista uma convergência gigantesca de adventures, jogos de ação e RPGs. O que é RPG então?

Uma saída preguiçosa foi recorrer ao nome literal, jogo de interpretação de papel, que recai sobre erros grotescos onde jogos de simulação (como The Sims) são considerados RPGs. Sob o mesmo ponto de vista, grandes sagas de RPG como Final Fantasy e The Witcher não poderiam ser considerados RPGs, pois apresentam uma narrativa rígida e fixa na construção de seus protagonistas, sem margem para interpretação.

Uma mão amiga na teoria literária

Ao tratar os jogos digitais como mídias com potências narrativas e interativas, podemos recorrer a um estudo que antecede em alguns milênios a criação dos jogos digitais. É na Teoria Literária (ou teoria da literatura) que temos as primeiras tentativas de separar os textos literários em formas e gêneros.

Na separação de formas, conceitos técnicos como extensão, ponto de vista técnica e mídia são o que delimitam a separação entre contos, novelas e teatro. E na construção de gêneros, é considerado elementos narrativos e emocionais que o diferem entre comédia, terror, drama e etc. 

Por fim, há também conceitos temporais e geográficos que delimitam subgêneros e movimentos literários (como o gótico inglês do século XIX, o realismo fantástico latinoamericano do século XX). Claro que há uma convergência de estilos, formas, gêneros e movimentos que geram uma vasta discussão. Mas ao menos estas discussões são baseadas em conceitos sólidos de teoria literária.

Teoria Cinematográfica

Os jogos digitais não seriam a primeira mídia narrativa a “emprestar” conceitos da teoria da literatura. Mesmo com pouco mais de um século de existência, o cinema também já exploraria seus diversos gêneros como “comédia”, “romance” e ‘terror”, como também exploraria movimentos próprios.

Como mídia narrativa audiovisual, o cinema teve movimentos que mergulhavam em alguma convenção de gênero e exploravam de uma forma e momentos específicos de sua história. Além de emprestar conceitos de outras mídias e formas de arte.

Exemplos: 

Expressionismo Alemão: Um contraste acentuado em preto e branco montado num ambiente irreal e fantasioso acompanhado de uma narrativa misteriosa e quase onírica. Assim como muito influenciado pelo simbolismo, surrealismo e expressionismo das artes plásticas, próprios da década de 20 e 30.

Western: Paisagens expandidas e naturais do oeste americano capturado em cores vívidas. Ao passo que usa duma narrativa moralizante (no western americano) ou pessimista (spagueti western). Simultaneamente sendo baseadas em ficção pulp sobre esse período específico de expansão dos EUA no oeste americano).

Film Noir: Filmes em preto e branco com narrativas dúbias e convolutas, por vezes niilistas. Fortemente influenciados pela ficção de detetive “hard boiled” mas que também pode se aprofundar em narrativas de drama (Crepúsculo dos Deuses) e terror (Sangue de Pantera).

Sobre jogos digitais

Somado a problemática audiovisual, jogos digitais ainda tem o adicional de ser uma mídia interativa, que precisa de jogador efetivamente interagindo para que a história se desenrole. Por isso, este elemento (assim como o audiovisual no cinema) deve ser considerado quando se constrói a concepção de um gênero.

Conceitos simples de gênero como “terror” e “ação” (baseados nas perspectivas emocionais na narrativa) ou FPS e Point n Click (baseados na interatividade e perspectiva de câmera) são pontos simples de definir. O diabo está nos subgêneros e movimentos… videoludológicos?

Por uma teoria… videoludológica?

Hoje o conceito é disperso em termos como Classic RPG, RPG de turno ou J-RPGs. Apesar disso, é entendido que jogos como Dragon Quest, Final Fantasy e Phantasy Star são formados pelo mesmo gênero de videojogo. Ou seja, dividem uma jogabilidade e expectativa de narrativas bastante semelhantes. 

Porém o que é considerado RPG hoje em dia é bastante distante do que era cristalizado como RPG naquele momento. Assim como os primeiros jogos a tentar emular uma experiência digital de mesas de RPG (como os primeiros MUDs, Adventures e séries como Ultima) em nada se assemelham a essa mesma experiência. 

Igualmente problemático é perceber que o que era considerado como FPS no começo dos anos 90, também se modificou e se transformou numa experiência completamente nova. Ironicamente, até incorporando elementos do já citado amadurecimento do RPG).

O que tudo isso está relacionado com Survival Horror?

Um ensaio de definição de Survival Horror

Fugindo do que já foi estabelecido como burrice preguiçosa, a definição de Survival Horror não pode ser uma interpretação literal de horror de sobrevivência. Mas sim, uma experiência completa de interatividade, narrativa, temática e temporal, DENTRO do gênero terror.

Para um jogo ser considerado terror, basta que ele evoque intencionalmente uma estética e experiência interativa de terror e medo. Porém o Survival Horror como subgênero dentro do terror, exige algumas especificações que realçam a experiência de sobrevivência, além de influências estéticas de outras mídias.

Uma experiência estética completa

Como jogabilidade, o gênero é definido pelo seu comando em terceira pessoa com pontos de vistas estacionários ou dinâmicos. Mas que evoquem uma experiência visual cinematográfica como em filmes de terror americanos, italianos e até mesmo japoneses. Simultaneamente sendo influenciado pela estética e narrativa dos mesmos.

Tem como finalidade uma narrativa que desperte insegurança, medo e apreço pela sobrevivência. Deve ter em seu gameplay, recursos de jogabilidade que enfatizem esse sentimento de sobrevivência (recursos escassos, dificuldade para gravar o estado do jogo e mecânicas que desencorajam o combate).

Por fim, deve ter uma narrativa ligada ao terror que pode circular tanto entre a fantasia, sobrenatural e ficção científica, como o realismo de um terror psicológico. A possibilidade de diversos finais também é uma convenção comum do gênero.

Recorte temporal

Assim como os movimentos literários e cinematográficos, o Survival Horror nos jogos digitais teve obras primordiais que serviram de influência para sua criação (Alone in The Dark e Doctor Hauzer). Desfrutou do seu apogeu (Trilogias Resident Evil, Silent Hill e Fatal Frame) e uma lenta decadência, desvirtualização e até paródia. 

Como movimento videoludológico, o Survival Horror existe isolado no tempo: Floresceu entre o lançamento de Resident Evil 1 e 4 (1996 até 2005). Serviu de influência para jogos de outros gêneros durante e depois da sua existência (Clock Tower como jogo de point n click, Dead Space como FPS). Teve revivals que reformularam sua estrutura (Resident Evil 7 e The Evil Within) e até homenagens que reconstroem sua estética (The Glass Staircase).

Por que a definição de gêneros são importantes?

Se os jogos digitais almejam alcançar o status de arte através de sua criação como mídia narrativa e interativa. Se faz necessário que um campo teórico e competente se desenvolva. Assim como que conceitos vagos de gênero e movimentos artísticos dentro da mídia sejam discutidos e definidos com maior clareza.

O desenvolvimento de uma teoria cinematográfica foi parte do longo caminho que o cinema percorreu para alcançar a potencialidade estética de obra de arte que hoje pode usufruir. É necessário que os jogos digitais, se quiserem ser levados a sério, desenvolva também.

Sua definição de survival horror é contrária a minha? Tem alguma ideia complementar? Deixe seu comentário e vamos debater!

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