Em profunda expansão, o folclore nacional e a mitologia Tupi vem despertando profunda admiração e curiosidade do público e servindo de inspiração para as mais diversas mídias narrativas brasileiras. Muito mais do que criaturas fofinhas da literatura infanto juvenil, o folclore nacional é terreno fértil para criaturas inimagináveis. Conheça alguns monstros do folclore brasileiro.
Mapinguari (ou Mapinguary)
Seria talvez a versão brasileira do americano “Pé Grande” ou do tibetano Yeti? Através do globo terrestre, existem diversos avistamentos de grandes símios/primatas gigantes relacionados com um elo perdido da raça humana em sua forma animalesca e bruta. Mas há algo que o nosso Mapinguary tem que o difere dos grandes criptídeos internacionais. Sua aparência monstruosa.
De semelhante há o básico. Um corpo agigantado de três metros, um pêlo espesso que cobre todo seu corpo e um odor inconfundível que pode ser exalado de longe. Mas a diferença com o nosso Mapinguari está nos detalhes. Em sua pequena cabeça, há um único grande olho. Sua boca cheia de dentes agudos começa no tórax e corre verticalmente até seu ventre. É comum o relato de que se alimentava frenquentemente de homens que se perdiam na floresta.
Uma explicação para o mito?
Assim como hoje se acredita que a figura mitológica dos ciclopes foi baseada numa interpretação confusa de fósseis de mamutes encontrado por gregos na idade do bronze. Considera-se que o mesmo ocorreu entre o Mapinguari e as ossadas de preguiças-gigantes. Um representante brasileiro da megafauna, período que a terra fora dominada por descendentes gigantes dos mamíferos que hoje herdaram a terra.
De qualquer forma, a figura assustadora de Mapinguari povoou diversos mitos e lendas da cultura tupi. E sobrevive até hoje no folclore do interior do Brasil. Alguns ainda defendem que a ideia do monstro descende de uma memória ancestral de quando o ser humano dividiu espaço com a fera e acabou levando-a a extinção, dez mil anos atrás.
Até mesmo, há quem diga que alguns de seus descendentes ainda vivem em densas florestas inexploradas pelos seres humanos. Se alimentando não de brotos e raízes como seus descendentes atuais, mas de exploradores inexperientes que se perdem na imensidão verde da amazônia.
Jurupari (ou Jurupary, Yurupari)
Figura lendária ligado a mitologia tupi que tem diversas interpretações ao redor do Brasil. Sendo associado previamente com uma figura legisladora, segundo o antropólogo Camara Cascudo, Jurupari era uma divindade comumente cultuada pelos nativos antes da chegada dos europeus.
Como medida de catequização, os jesuítas associaram o imaginário negativo e misterioso de Jurupari com o diabo, e trouxeram ao centro de devoção uma divindade menor, porém com atributos mais facilmente associados ao deus cristão. Essa divindade era Tupã.
Nesta segunda roupagem, Jurupari era agora uma entidade responsável pelos pesadelos, pela escuridão e a representação do mal em si. Dizia-se que Jurupari aparecia em sonhos como mau presságio. Para aterrorizar as pessoas com visões terríveis, porém sufocando suas vítimas para que elas não acordassem gritando. Essa visão da criatura era difundida pelos Jesuítas justamente para enfraquecer o culto da divindade nas terras catequizadas.
Anhangá (ou Ahiag̃)
Outra entidade que era adorada e cultivada pelos nativos, antes de ser demonizada pelos jesuítas. Seu nome serviu de base para o nome do Vale do Anhangabaú, devido ao rio de mesmo nome que hoje corre canalizado no subsolo do vale. Em tupi, Anhangabaú significa “água de Anhangá” pois acreditava que o espírito habitava o entorno de seu leito.
Era um ser metamorfo, podendo assumir diversas figuras. Mas certamente sua imagem mais famosa era a de um cervo branco de olhos vermelhos que brilham como fogo. É considerado um espírito protetor das florestas, da fauna e contra a caça predatória. Como proteção, diz ser agraciado por um pedaço de fumo deixado na entrada da mata.
Sua imagem nas extintas tribos nativas na capital paulistana é associada com a de outras figuras protetoras da floresta como o Curupira e a Caipora no folclore nacional. Assim como as fadas, imps e goblins no folclore europeu (pela sua forma brilhante). Ou com as divindades Cernunnos (mitologia celta) e Pã (mitologia grega) por sua forma animalesca e cornuda.
Para a cultura Mawé, etnia do tronco tupi que reside no norte do país, Ahiag̃ (como é chamado por eles) não é uma entidade, mas diversos espíritos malignos que são subservientes de Yurupari (este o líder dos espíritos malignos da floresta). Ao contrário da versão paulista que é famoso por habitar um rio, a versão Mawé ironicamente tem pavor da água.
Recomendação de leitura: Yaguarê Yamã
Para uma leitura mais amplas dos mitos tupis através da ótica da cultura Mawé, recomendo com carinho o livro O caçador de histórias (Sehay ka’at haría) de Yaguarê Yamã. O autor é amazonense formado em geografia. Além do intenso trabalho de ativismo político pela população, escreve diversos livros infanto-juvenis sobre os mitos e histórias de seu povo.
Em O Caçador de Histórias, Yamã reconta as lendas que ouvira de seu pai quando era criança com uma narrativa super fluída e interessante.
Pisadeira
Você se vê no seu quarto sozinho, parado. Nesta noite de sonhos perturbados, você percebe que não pode se mover, nem sequer respirar. Você luta em estado de horror para que consiga assumir o controle do próprio corpo. Porém o mais aterrorizante de sua situação, é perceber que em seu próprio quarto, de madrugada. Você não está sozinho.
Essa é uma experiência constante daqueles que sofrem de paralisia do sono. Uma condição neurológica que acontece quando o cérebro desperta de um sono profundo enquanto o corpo permanece paralisado. A confusão da situação pode levar o cérebro a criar alucinações. Como de que alguém está a te observar, ou pior, que alguém está sentado sobre o seu peito.
Diversas culturas do mundo atribuíram a criaturas folclóricas diferentes, como causadores de tal fenômeno. Uma representação artística desta experiência foi muito bem captada na tela por Henry Fuseli em seu quadro “O Pesadelo”. No Brasil, a criatura responsável por desencadear a paralisia do sono é chamada de Pisadeira.
Descrita como uma mulher muito magra, de pernas curtas, cabelo desgrenhado e unhas compridas e amareladas. Ela vive em telhados a espreita de pessoas doentes ou que pratiquem a gula. Esperando que elas adormeçam para que ela pise sobre seus peitos e arranhe seu rosto enquanto dormem.
Corpo Seco (ou Unhudo)
A ideia de um corpo que se mantém vivo mesmo após sua morte biológica povoa o imaginário humano há milênios. O zumbi que conhecemos herdou seu nome de uma criatura do vodu haitiano. Que era controlada por um shaman chamado “Bokor”, que revive um corpo a fim de usá-lo como servo desprovido de qualquer verdade própria.
Porém a característica mais básica de um ser que simplesmente levantam de sua tumba por conta própria reflete nas mais diversas culturas globais. Temos o Draugr nórdico, o Ghoul árabe, o Wight britânico, o Jiangshi chinês e até mesmo os vampiros do leste europeu, antes da releitura através da literatura gótica.
Todos são variantes da lenda de um corpo morto que se levanta pra se alimentar dos seres vivos. E Corpo Seco de fato divide várias semelhanças com seus semelhantes. Sua imagem mais comum lembra um ser cadavérico com unhas compridas, roupas velhas e rasgadas e um grande chapéu de palha.
É dito que uma pessoa vira um Corpo Seco após ter um comportamento odioso em vida. Nem o céu ou o inferno aceitam sua entrada após a morte. Fazendo o seu corpo vagar sozinho pelo mundo dos vivos. Essa origem se assemelha bastante com a história de “Jack-o’-lantern” que tem sua entrada barrada no inferno após, em vida, ter enganado o diabo duas vezes.
Em algumas cidades do interior de São Paulo, o monstro é conhecido como “Unhudo”. Uma pessoa que em vida protegeu intensamente suas terras de invasores e caçadores. E que agora se dedica eternamente a proteger o mesmo terreno após sua morte.
Bibliografia recomendada
Gostou do assunto e quer se aprofundar? Tem alguns livros que eu adoraria recomendar sobre folclore nacional. Luís da Câmara Cascudo, que fora citado no artigo, tem diversos livros interessantes sobre o tema, como: Dicionário do Folclore Brasileiro, Geografia dos mitos brasileiros e Contos tradicionais do Brasil: confrontos e notas.
Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-americano da historiadora Mary Del Priore também é uma excelente leitura para compreender o imaginário histórico por trás de tão fantásticas criaturas.
Gosta de celebrar a cultura brasileira? Leia meu artigo recomendando HQs e Webcomics nacionais!
https://historiadorgeek.com.br/index.php/2016/02/27/hqs-e-webcomics-nacionais/