Quem é de fato o autor de um jogo? É possível desenvolver uma teoria do autor para jogos digitais? É isso que pretendo responder.
Quem é o autor de um jogo? Em busca de uma Teoria do Autor
Okay, eu sei que devo estar parecendo obcecado com a história recentemente do Kojima, mas devido a alguns comentários esparsos na internet sobre a autoria de fato do Metal Gear, eu tive de fazer esse texto. Eu não estou nem comentando sobre propriedade intelectual, que pode gerar uma discussão mais extensa ainda e que eu arranhei um pouco do assunto no texto sobre pirataria. Estou a falar da questão autoral num olhar mais artístico mesmo. Em uma obra onde tantas pessoas participam, quem é o “autor” do game?
Como os jogos digitais é uma mídia que ainda se esforça para se provar como expressão artística, esse tipo de discussão é sumariamente ignorado. Porém é necessário compreendermos esse tipo de ideia principalmente nesse momento quando grandes distribuidoras, que tem grandes franquias de peso artístico e narrativo em seu catálogo, estão tratando seus game designers como peças descartáveis.
Jogos digitais como obra artística são produções em grupo que conta desde animadores, músicos, roteiristas, diretores e modeladores, dependendo da obra. Assim como os jogos, os filmes são também uma obra multimídia onde diversas pessoas interagem para a construção do produto final. Como é uma expressão midiática mais antiga, o cinema já entrou em uma discussão proveitosa sobre a autoria de um filme, tentarei dar uma breve resumida nos próximos parágrafos.
Cinema das estrelas x cinema autoral
Depois de décadas de produções cinematográficas desde sua invenção, o cinema evoluiu de uma pequena experiência científica de captação de imagens em movimento para uma mídia narrativa competente. Durante a chamada “Era das Estrelas” o cinema cativava o público americano com suas estrelas mais famosas na crescente Hollywood. Clark Gable, Humphrey Bogart e Jimmy Stewart eram alguns dos nomes que levavam o grande público as salas do cinema, sendo considerados “os donos” da obra.
O diretor tinha quase um papel secundário na obra sendo raramente reconhecido, com exceção de Orson Welles, que fez um trabalho excepcionalmente autoral para época com Cidadão Kane e que foi inteligente o suficiente para escalar a si próprio como astro de seu próprio filme. Outros diretores que fizeram sucesso no período foram os que se dedicaram com maestria a um gênero específico, sendo Frank Capra famoso por suas comédias românticas e Alfred Hitchcock pelos clássicos do suspense.
Durante os anos 50 e 60, uma nova escola cinematográfica se formava na Europa, principalmente em França e Itália chamado de Nouvelle Vague (Nova Onda) que, entre outras ideias, visava um cinema mais autoral por parte do Diretor (influenciado de certa forma por Cidadão Kane) e revolucionar o jeito de se fazer cinema.
Alguns dos diretores mais famosos do período foram Godard, Fellini,
Truffaut e Resnais. A Nouvelle Vague contestava o movimento cinematográfico anterior, o “realismo poético francês”, que concentrava o trabalho e a autoria da obra no roteirista, como o escritor da narrativa e verdadeiro dono da obra. A temática cruel e fria das obras do realismo francês influenciaram o cinema noir americano, onde o roteirista também tinha um certo destaque.
A reinvenção de Hollywood e a era dos Blockbusters
Devido ao enorme sucesso do gênero francês, os cineastas americanos foram fortemente influenciados pelo movimento autoral durante os anos 70. Chamado de Nova Hollywood, essa nova estética trouxe a assinatura e visão única dos diretores como foco na maior indústria cinematográfica do mundo. Nomes como Coppola, Scorcese e de Palma trouxeram com eles filmes com temáticas mais pesadas e sombrias do que a hollywood clássica estava acostumada a lidar.
Porém, desse novo movimento, dois diretores trariam filmes tão lucrativos que mudariam novamente o jogo. Tubarão de Steven Spielberg e Star Wars de George Lucas quebraram recordes de bilheteria e iniciaram o que se chama de Era dos Blockbusters. Os filmes viraram então grandes obras de investimento e retorno financeiro, crescendo em importância o trabalho do produtor executivo, responsável por gerir os recursos e andamento do projeto e os grandes estúdios responsáveis de financiar o projeto. É dito que ainda vivemos na Era dos Blockbusters.
Indústria de games x indústria de cinema
Apesar de algumas obras esparsas antes, é de comum aceito que os jogos como mídia se iniciaram nos anos 70, junto com o período dos blockbusters no cinema. Apesar de ser uma mídia completamente diferente e independente do cinema, os jogos digitais sofrem um colonialismo do cinema e meio que se inserem na mesma lógica de mercado dos cinemas. Space Invaders é considerado o primeiro jogo blockbuster capaz até de causar escassez em moedas japonesas que eram usadas no fliperama.
No período mais recente, o que chamamos de indústria AAA segue a mesma lógica de administração que os grandes estúdios hollywoodianos, com o agravante de circular ainda mais dinheiro que os cinemas. Hoje as grandes desenvolvedoras ficam com a autoria do jogo enquanto diretores, game designers e roteirista tem papel quase coadjuvante na construção da obra. Mas, está mesmo a essência da autoria do jogo com as desenvolvedoras?
Um ensaio sobre o videogame autoral
Não há como falar sobre jogos autorais sem citar a indústria indie de games, então recomendo que vocês leiam meu texto justamente sobre eles, lá descrevo algumas obras e como funciona essa indústria que foca justamente em jogos autorais, talvez o melhor exemplo a dar seria do game designer chamado Davey Wreden e de suas obras “Stanley Parable” e “Begginers Guide”.
Deixando isso de lado, e na grande indústria? Existe a possibilidade de um jogo autoral? Vejamos por exemplo Silent Hill, desenvolvido pela Konami. Não há muita dúvida sobre os melhores jogos da série pertencerem a trilogia original e o quarto apesar de uma certa queda de qualidade, se mantem entre os jogos interessantes, sendo os outros a partir de então com recebimento misto entre fãs e críticos. O que difere em termos de produção os primeiros jogos do resto da franquia?
O envolvimento da “Team Silent” uma equipe de desenvolvedores dentro da Konami que foi responsável pelos primeiros títulos da série, mas que foi desmontada com o tempo sendo o projeto passado para outros estúdios, que parecem nunca acertar a visão sobre o jogo.
Outra série da Konami que está intimamente ligada ao trabalho autoral é Castlevania. Desde seu trabalho em Symphony of the Night, eleito por fãs como o melhor da série. O diretor Koji Igarashi ficou responsável pelo desenvolvimento da série e todas as obras que produziu tiveram boa recepção de críticas, por motivos de desentendimento com a Konami, Igarashi saiu da empresa e fundou sua própria desenvolvedora indie.
Seu primeiro projeto esta sendo o desenvolvimento do jogo Bloodstained: Ritual of the Night, onde fãs já apontam como o sucessor espiritual da série. Outro diretor que também teve problemas com sua desenvolvedora e reviveu seu trabalho na industria indie foi Keiji Inafune e seu Mighty No. 9, que copia a estética de Megaman. Também aplaudido por fãs como o verdadeiro sucessor da série.
O Caso Kojima
Chegando finalmente ao recente caso de Kojima com a saída da Konami, não é justo pensar que o grande autor da franquia (em questão de arte, não de propriedade intelectual) não seria Hideo Kojima? Snake Revenge, jogo da série lançado para NES que não teve a participação do mestre teve uma recepção bem fraca e é acusado por ele mesmo como um jogo de péssima qualidade. A Konami já disse que não vai abrir mão dos direitos da série e que vai continuar seu desenvolvimento. Será que eles conseguiram produzir outro jogo da série com a mesma qualidade que os anteriores?
A pequena equipe de Kojima está independente e sendo financiada pela Sony, será que o próximo jogo, que com certeza será bastante autoral, conseguirá ter o mesmo sucesso de crítica da série MGS? Será que estamos para ver uma grande obra artística dos jogos digitais que irá mudar a indústria mais uma vez? Essa pergunta apenas o tempo poderá responder.