Obra clássica da literatura inglesa, 1984 de George Orwell nos mostra um Inglaterra controlada por um partido totalitário que governa com punho de ferro, impedindo as liberdades individuais e controlando socialmente a população, exatamente como em V de Vingança. Seria então V de Vingança uma releitura de 1984?
Obviamente Moore conhecia bem esse clássico da literatura e tomou emprestadas diversos ideias para a criação de sua obra. Vários conceitos são semelhantes e nos levam diretamente a uma atualização da visão crítica do totalitarismo utilizada por Orwell no romance. Mas vale ressaltar que a história viaja muito além de uma mera releitura. Para essa análise, vamos ressaltar primeiro o que as obras têm em comum.
George-Orwell-1984-Nas duas obras o poder é exercido pelo controle social. Uma grande tela reflete a imagem do líder do partido, que discursa a favor do governo e inspira um sentimento nacionalista nos cidadãos por meio de uma rede de televisões que não pode ser desligada.
Com um adicional em V de Vingança, que também conta com o controle religioso no país, que teve sua origem após uma praga ter devastado grande parte do mundo, mas poupado a Inglaterra. O motivo de tal “milagre” é explicado no decorrer da graphic novel.
Também nas duas obras, tudo considerado artístico é proibido. Os cidadãos comuns não tem acesso a grandes clássicos da literatura e arte. No desenrolar das histórias, os protagonistas (Evey, na sala V em V de Vingança e Winston Smith, na loja de contrabando de bens, em 1984) são seduzidos pela vida simples e acesso a cultura que eram possíveis em “tempos passados”, sendo assim motivador da rebelião pessoal do personagem contra o sistema totalitário em que vivem.
Além das óbvias diferenças estruturais das duas mídias, entre um livro e um quadrinho, o que difere as duas obras é a atuação do personagem (V, em v de vingança e Smith em 1984) de rebeldia ao sistema que vive.
Enquanto o protagonista de 1984 é muito mais passivo e impotente perante o governo centralizador chamado Ingsoc, mostrando uma resistência muito mais intelectual e econômica do que ativa, em V de Vingança temos um herói que usa de meios violentos e agressivos inspirado no anarcoterrorismo de fim do século XIX para a derrubada do governo.
Talvez o motivo para essa disparidade de ação dos protagonistas das obras seja motivada pelas motivações políticas de seus escritores. Orwell, apesar de criticar o regime marxista-leninista da União Soviética, se dizia um socialista democrático. Ou seja, via na democracia direta e sufrágio universal, além do respeito às liberdades e direitos civis, como um meio de consolidar o socialismo.
Essa ideia talvez seja inspirada no Socialismo Fabiano britânico defendido por intelectuais como Bertrand Russel, Virginia Woolf, H. G. Wells e Bernand Shaw. Uma alternativa muito mais pacifista e progressista do que o marxismo-leninismo, o Socialismo Fabiano prevê reformas sociais graduais e defende a filosofia pragmática, comum a filósofos britânicos, se opondo a revolução armada. A Sociedade Fabiana está intimamente ligada à fundação do partido trabalhista britânico.
Moore, no entanto, representa um ideal mais próximo do anarco-comunismo. Grupo inspirado nas ideias do anarquista russo Mikhail Bakunin, que prevê a total abolição do estado por meio do confronto direto para instaurar uma sociedade autogerida de pequenas comunas administradas por assembleias comuns. O terrorismo segundo a visão de alguns bakunistas é um meio de ação direta válida contra os abusos do estado.
Seja qual forem às motivações dos escritores, a mensagem nas duas obras é a mesma: Impeçam o estado de concentrar poder e regular as liberdades civis. Em ambos vemos como um estado de poder único sem representatividade e extremamente corrupto consegue usar do controle social nos cidadãos e, aliados a uma vigilância total da atividade de todos seus cidadãos, consegue se manter no poder.
Portanto não faz sentido ler a obra de Moore, incorporar a máscara do protagonista principal e ir as ruas clamar por intervenção militar ou concentração de poder e vigilância nas mãos do estado. Seja em 1984, no V de Vingança ou até refletido em outras obras do meio geek como Star Wars e Jogos Vorazes a critica social é a mesma. Valorizem a liberdade, desconfiem do governo e desafiem autoridades que não se validam socialmente
Caro. Análise clara e precisa. Tenho pensado muito em uma terceira obra, Fahrenheit 451, que acredito ter uma boa relação com as demais, apesar da “resistência” ocorrer ainda mais sutilmente. Grata surpresa o site.
Obrigado pelo elogio, Letícia!
Fahrenheit é também uma importante obra da tríade distópica (adicionando ai Admirável Mundo Novo) e merece também atenção.
O site ainda está começando então se for possível compartilhar os artigos com amigos eu ficaria muito agradecido. Até mais!