Tanto o ambiente acadêmico ou a comunidade de jogos digitais são bastante hostis com o público feminino, que lida frequentemente com preconceito e falta de respeito pelo público masculino. Porém na junção desses campos temos um fenômeno interessante. Há um grande protagonismo feminino no estudo crítico e técnico sobre games, em especial no campo da semiologia.
Fiz aqui uma pequena lista com autoras que repetidamente li quando pesquisava sobre análises científicas sobre jogos digitais no campo acadêmico. Para talvez despertar a curiosidade dos leitores nesse tipo de pesquisa e quem sabe, motivar mulheres que tem interesse na área, mas não tem um apoio sólido para tal empreitada.
Conheça então, algumas dessas pesquisadoras que fortalecem o protagonismo feminino no estudo de games no mundo.
Flávia Gasi
Minha autora favorita da lista e principal motivação para o tema de meu TCC. Flávia Gasi é mestra e doutoranda pela PUC-SP no campo de semiótica. Escreveu o livro“Videogames e Mitologia: A poética do imaginário” que aborda como que os jogos mimetizam a criação do imaginário de antigas mitologias, em especial o grego, para a construção de suas próprias mitologias.
Por meio do simbolismo e ressignificação de signos, os jogos podem adaptar signos da psique humana e arquétipos junguianos na criação de seus personagens e motivações dos antagonistas. Ela analisa principalmente os jogos God of War, BioShock, Silent Hill 2 e Eternal Sonata.
Além de correlações com a mitologia grega. Apesar de não ser a primeira a defender, ela delimita muito bem uma ideia de junção dos campos de narratologia e ludologia no estudo de games. Da qual chama de “narrativas ludológicas”, termo que eu usei e abusei no meu tcc da pós em História da Arte.
A tese de mestrado dela pode ser encontrada na internet clicando aqui. Apesar do livro ter sido baseado na dissertação de mestrado dela, eu recomendo também a leitura do livro que é um ótimo trabalho sobre o tema e com uma escrita mais livre e autoral do que a feita na dissertação, além de mais dinâmica.
Também fiz um fichamento do seu livro Videogames e Mitologia, dá uma conferida:
Gasi atualmente participa de um programa online semanal do IGN chamado Gamepedia que fala de… Bem, vocês já devem ter imaginado. Apesar de o programa ser mais puxado para o humor e não ter o mesmo tom sério e científico dos escritos da Flávia, vale bastante a pena dar uma conferida
Lúcia Santaella
A maioria das escritoras citadas aqui é do campo da semiótica e não há melhor pessoa para conhecer sobre essa ciência do que ela. Grande divulgadora da semiologia e estudiosa de Charles Pierce no Brasil, Santaella é doutora em crítica literária e professora titular pela PUC-SP, com uma grande quantidade de 41 livros e centenas de artigos publicados.
É realmente difícil recomendar livros dela pelo grande número de publicações. Mas uma aposta segura para iniciantes é o livreto chamado “O Que é Semiótica”. No qual a autora faz uma leitura resumida dessa ciência difícil de ser definida e faz um levantamento do autor pragmático americano Charles Pierce, um autor difícil de ser resenhado.
Se você quer dar passos mais ousados na leitura teórica da arte digital, recomendo o livro: “Culturas e Artes do Pós-Humano: da cultura das mídias à cibercultura”. Um livro denso que tenta conceituar os períodos das artes na história da humanidade e que se coloca justamente entre o fim da era da cultura das massas e o começo da cibercultura, onde nossos preciosos games estão envolvidos. Outro livro importante do trabalho de Santaella é o “Mapa do Jogo”, livro editado em conjunto com a próxima autora dessa lista.
Mirna Feitoza
Jornalista e mestre em Comunicação e Semiótica, Feitoza coleciona diversos artigos e palestras direcionada aos jogos digitais. Como coeditora do livro “Mapa do Jogo: A diversidade cultural dos games”, Mirna ao lado de Santaella dão vida a esse excelente livro que reúne diversos ensaios sobre jogos digitais com os mais diversificados temas. Definitivamente é um livro que vale a pena ter por perto. Tendo um preço camarada, torna se indispensável para quem quer conhecer o debate acadêmico para jogos digitais.
Feitoza escreve em seu próprio artigo no livro intitulado: “Videogames e conexões na semiosfera: uma visão ecológica da comunicação” como se faz a comunicação natural e lúdica em crianças pequenas com os dispositivos de comunicação de mídias eletrônicas.
Em outro artigo, este fora do livro, intitulado: “Games como ambiente de conhecimento de cultura” (que posso ser acessado aqui). Mirna demonstra como os jogos digitais, como figura criativa de cultura e arte, podem servir assim como livros, filmes e outras mídias artísticas, como objeto de linguagem e comunicação para diversas formas de cultura. A visão da autora está mais ligada à comunicação e nas linhas que traçam esse artigo podemos ver o valor que Feitoza dá aos jogos digitais como mídia de comunicação.
Renata Gomes
Também doutora em Comunicação e Semiótica, Gomes participa também com um ensaio no livro “Mapa do Jogo” chamado “Shenmue e o Dilema Narrativo” que eu acho simplesmente fantástico. Shenmue, para quem não conhece, foi um adventure inovador com detalhes de RPG e luta lançado para Dreamcast. Jogo que se tornou famoso justamente por ser inovador estilo e seu orçamento astronômico para a época.
No artigo de Renata Gomes, ela demonstra o paradoxo da narrativa com interação durante o jogo. Pois ao mesmo tempo em que Shenmue disponibiliza uma história rica e intrincada que segue uma linha única de narração. Oferece um mundo aberto nunca visto antes que, até para os padrões atuais, se torna conhecido por ser completamente interativo. Todos os NPCs do jogo têm frases e reações que variam conforme o dia e praticamente vivem uma vida própria.
Manter um mundo orgânico e dinâmico ao passo que é criado uma narrativa central é o grande quebra cabeça não só de Shenmue, mas de todos aqueles que estudam os jogos digitais como mídias narrativas. E nesse ensaio, Gomes explica quais caminhos e ações foram tomadas no jogo para que essa interação fosse possível.
Outros artigos que valem a pena checar de Gomes são: Videogames: imagem, narrativa, participação e Narratologia & Ludologia: um novo round (ambos podem ser acessados ao clicar no título). Que são artigos mais gerais que pontuam em que pé estamos no debate sobre jogos digitais e arte, e qual o papel dos jogos digitais nas mídias narrativas e imagem contemporânea.
Janet Murray
A grande rainha no estudo de narratologia em mídias digitais e de excelente representatividade no protagonismo feminino no estudo de games. Seu livro “Hamlet on the Holodeck: The Future of Narrative in Cyberspace” foi pioneiro no questionamento da possibilidade das mídias digitais. Considerando o poder de entregar uma narrativa imersiva que não substituiria os modelos clássicos de mídias narrativas, mas que agregaria uma nova dimensão de entretenimento e interatividade em histórias e imagens.
Um clássico absoluto para qualquer leitor de potências narrativas e estéticas em jogos digitais. Murray mostra no livro como a necessidade de criação de histórias e narrativas são intrínsecas ao desenvolvimento da cultura no ser humano. E que os modelos narrativos se modificaram com o tempo conforme o desenvolvimento técnico da humanidade.
Proporcionando novas alternativas à narração, porém sem apagar completamente o modelo anterior. Mesmo com o advento da televisão ainda existe o cinema. Ainda que exista o cinema, podemos ver o teatro. Mesmo com o teatro ainda existem livros, mesmo com o livro, ainda existe a narrativa oral.
Murray então faz um salto no futuro e paralelamente analisa o holodeck, um artefato de realidade virtual criado no universo ficcional da série Star Trek (sim, ela é nerd assim). Defendendo que no futuro, a imersão total na tecnologia digital irá também absorver a habilidade de contar histórias como uma nova mídia.
A autora estava referenciando os jogos adventures que estavam em produção na época em que o livro foi publicado. Mas a análise feita nessa obra previu uma grande tendência de imersão e interatividade proporcionado por aparelhos como Oculus Rift e o controle sensorial do PS4. O livro de Murray abre um mundo de possibilidades para o entendimento sobre narrativas em mídias digitais.
Outras pesquisadores focadas no estudo sobre game
Existem ainda diversas mulheres que representam com maestria o Protagonismo feminino no estudo games. Porém não é possível narrar todos os trabalhos da área. Se é de interesse do leitor uma pesquisa ainda mais atenta na área, recomendo esses nomes à pesquisar.
Marie-Laure Ryan, também da área da narratologia, uma obra recomendável dela é Beyond Myth and Metaphor: The Case of Narrative in Digital Media.
Adriana Kei Ohashi Sato, uma das escritoras do livro: “Mapa do Jogo”, tem um artigo disponível Imaginário e Design: Resignificação do Jogo Eletrônico por meio da Linguagem Expressiva
Karen Keifer-Boyd, autora feminista que teoriza sobre a potencialidade estética de jogos digitais e o papel feminino em mídias narrativas. Dela achei esse artigo em inglês: Visual Cultura and Gender Constructions
Lúcia Leão, jornalista e artista plástica. Leia Da ciberarte à gamearte[ou da cibercultura à gamecultura]
Laurie N. Taylor. PhD em biblioteconomia e curadoria digital tem um excelente artigo chamado “Gothic Bloodlines in Survival Horror Gaming” no livro Horror Video Games: Essays on the Fusion of Fear and Play
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Caramba! Você não faz ideia do quanto essa postagem me será útil! Eu estava procurando artigos e teses acadêmicas sobre games. Estou no último ano da faculdade de Letras e estou correndo atrás de um tema pra minha monografia, mas não me sinto disposto a fazer algo envolvendo literatura, ainda mais se for voltada a autores e gêneros mais clássicos, como a maioria faz. Eu queria explorar outras formas de narrativa (inicialmente pensei em quadrinhos) e pensei na possibilidade de fazer algo envolvendo certos jogos (os do gênero survivor horror e o aclamado Undertale que joguei há pouco tempo e não sai da minha cabeça) por acreditar que eles possam render uma boa discussão. Descobri que a semiótica é uma ciência válida para analisá-los, embora eu tenha pego aquele livro básico sobre semiótica da Santaella há alguns meses e desistido na metade da leitura. Mas vou dar uma segunda chance para a semiótica e para ver se consigo sentir algum prazer nela. Se bem que eu ainda teria de achar um orientador que aceite a orientar um TCC envolvendo games =\
Aliás, excelente blog! Voltarei aqui em breve, pois tem algumas postagens que só pelos títulos me interessaram bastante.
Estou muito feliz que meu trabalho te ajudou nesse momento difícil de escolha de tema da monografia (só quem já passou por isso sabe ahaha). Semiótica é um campo difícil de entender mesmo, a Flávia Gasi tem leituras mais simples sobre o tema que acho uma boa para se guiar melhor na área.
Fiz uma série de artigos analisando a ligação de games e arte e acho que também te servirá de ajuda, principalmente a parte 1, que fala de narratologia
https://historiadorgeek.com.br/index.php/2016/02/18/games-e-arte-parte-1-narratologia/
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Abraços!