Apesar de não ter o melhor dos posicionamentos políticos e produzir um gênero considerado “menos nobre” por críticos de arte (a comédia satírica), Roberto Gomes Bolaños, ou Chespirito como é conhecido, tinha uma visão única sobre o gênero e suas principais criações conseguem até hoje algo muito difícil, fazer com que nós brasileiros, nos aceitemos como latinos.
Chaves
Uma de suas criações mais famosas, Chaves representa um pequeno vilarejo/cortiço com um tipo bem variado de pessoas morando. Uma viúva com seu filho mimado que se sente superior aos outros moradores da vila. Uma senhora aposentada solteirona com fama de bruxa, um viúvo que vive de bicos e favores, sua filha travessa e um pequeno menino morador de rua.
Qualquer pessoa que tenha morado ou conhecido um cortiço pode facilmente identificar cada um desses personagens narrativos. O fenômeno dos cortiços é uma alternativa comum na América Latina à falta de oferta de moradia para as camadas mais pobres da população. E seus personagens típicos são bem enraizados na realidade.
A única pessoa que tem alguma condição melhor de vida na vila, Dona Florinda, ganha uma pensão do governo pela morte de seu marido, um ex-militar, e com ela pode bancar os desejos de seu filho único e mimado. Numa economia tão enfraquecida como a da América Latina e que foi tomada por diversos períodos de ditaduras militares. A carreira militar realmente era uma alternativa lucrativa no mercado de trabalho.
E a falta de oferta do mercado de trabalho nos leva diretamente a outro personagem, Seu Madruga. Devido a dificuldade de encontrar trabalho registrado, seja por uma economia pouco competitiva ou pela grande regulação do estado na economia, Seu Madruga recorre ao trabalho informal sempre que pode fazendo “de tudo um pouco”, sendo inclusive uma piada recorrente da série. Profissões simples como vendedor de artigos usados, barbeiro, sapateiro, até mais exóticas como toureiro e boxeador já fizeram parte dos ofícios do personagem.
Porém mesmo com o esforço de garantir sustento para si mesmo e sua filha, o personagem é sinônimo de piada por ser vagabundo e oportunista por não se sujeitar a um trabalho registrado. Há em especial com Seu Madruga, uma enorme identificação do público brasileiro com o personagem, em parte graças a sabedoria da equipe de dublagem em renomear seu nome do original, Don Ramon (parte ironia com o título de Don, pronome de tratamento de respeito e parte referência a fama do ator no México) para um nome mais próximo da natureza do personagem, quase se tratando de um apelido.
Caminho inverso foi tomado com personagens Chilindrinha e Chavo, que respectivamente significam um tipo de pão polvilhado que se assemelham a sardinhas e uma gíria mexicana para “moleque”. Trocando os nomes com forma de apelido dos personagens originais para algo mais próximo de um nome.
Chapolin
Em Chapolin Colorado temos um quadro de comédia satírica ao gênero de Super Heróis americanos. Em contraponto a figura endeusada, heroica e imponente, popularizado principalmente por Superman. Chapolin nos mostra um herói falho, mulherengo e de inteligência e coragem questionáveis, uma visão que se aproxima e muito de uma pessoa comum, com seu aspecto galanteador quase servindo de estereótipo latino.
Ironicamente isso o coloca justamente como parte da Era de Bronze dos quadrinhos que tendia a aproximar os super-heróis de dramas mais humanizados e sérios, mostrando também figuras falhas e dramáticas. A era de bronze das HQs vai de 1970 a 1985 e Chapolin começou a ser rodado em 1972. Porém provavelmente Chespirito mesmo desconhecesse esse fenômeno editorial.
Encarnado na forma de um herói imortal que sobrevive ao tempo, Chapolin consegue abraçar diversos outros gêneros além dos de super-herói, algo que só recentemente a Marvel aprendeu a usar em seus filmes e séries. Dos experimentos temáticos da série podemos ver episódios de terror e suspense com casas assombradas e figuras folclóricas. Westerns, gângsters e piratas com direito a figurino e temas confiáveis. Filmes de época ou releituras de clássicos. Ficção científica dos anos 50 e 60, como a experiência de trocas de cérebro e as viagens espaciais e outros incontáveis temas.
No episódio “Uma Conferência para Chapolin”, Doutor Chapatin, um dos muitos personagens de Chespirito, faz uma análise justamente sobre essa natureza simples e o fator coragem do herói ao dizer: “A coragem não consiste em não sentir medo, mas sim em superá-lo. Aquele que enfrenta um perigo sem sentir medo não é um valente, é um irresponsável. Ao contrário, o que tem medo e apesar disso enfrenta o perigo, esse sim é um valente”. Mostrando que mesmo sendo uma sátira, Chapolin é em si um herói.
Chespirito sabia bem que fazia uma sátira latina a um gênero americano e para reforçar esse argumento criou o personagem “Super San” que como nome já diz é uma amálgama de Tio San e Superman. Ele sempre é referido como “produto importado” e que “é melhor valorizar o nacional” e por mais que Chapolin pareça um atrapalhado, ele ou os eventos costumam se ajeitar no final, dando um toque de astúcia ao planejamento maior.
Conclusão
Chaves é uma comédia bufônica que representa a mazela e pobreza das sociedades latinas e esse sentimento extrapola o idioma espanhol e chega ao nosso português abrasileirado. Chapolin, na figura de seu herói trapalhão, nos diverte e faz apreciarmos sua humildade e humanidade que o trás tão próximo das pessoas comum. De fato, poucos produtos de entretenimento da América Latina nos faz sentir, até os dias de hoje, tão latinos como Chaves.
Então coloque aquele álbum do Calle 13 para tocar, pegue aquele livro do Eduardo Galeano para ler, coloque pimenta nesse feijão e sinta-se parte desse escopo maior que é a cultura latina.