Conheça a estética neo noir nas séries Marvel da Netflix.
Diferente do clima leve e divertido dos filmes e seriados da Marvel/Disney, a Netflix optou por uma abordagem mais pesada, sombria e violenta que se aproxima bastante do neo-noir.
Conheça mais sobre os elementos clássicos desse gênero que está presente na série do Demolidor e com muito mais força na série da Jessica Jones.
Neo Noir?
Buscando uma revitalização dos filmes clássicos em preto e branco feito nos anos 40 e 50 como “A Marca do Mal”, “Laura” “D.O.A.” e Crepúsculo dos Ídolos”. O gênero traz muito dos seus dilemas e conflitos narrativos, junto de sua estética e iluminação únicas, para narrativas modernas.
O que é chamado hoje de neo noir, não é exatamente um movimento artístico ou um gênero totalmente separado do resto das produções cinematográficas, mas sim um conjunto de temas e influências que caracterizam uma obra.
No cinema, a primeira obra que melhor exemplifica esse tema é Chinatown (1974) de Polanski. Já no final dos anos 90 até recentemente, essa estética cinematográfica encontrou novo fôlego passando por L.A. Confidential (1997), Seven (1999), Zodíaco (2007) e Nightcrawler (2014).
O tema espalhou suas temáticas em outras diversas mídias como a HQ Sin City e jogo L.A. Noire (que tem recomendação minha na curadoria da steam). Entenda como esses elementos narrativos e estéticos do neo noir foram aproveitados nas séries Marvel Netflix.
Mistura de estilos
A fusão de outros estilos ao gênero de super heróis não é estranho às produções cinematográficas da Marvel. Homem Formiga mistura pitadas de ficção científica clássica (anos 50 a 80) e filmes de roubo a fórmula de super-heróis. O segundo filme do Capitão América, claro, empresta muito de filmes de thrillers políticos e espionagem dos anos 80 e 90.
Até mesmo a DC fez uma experiência (até então, parece bem sucedida) em usar uma temática chick flick (comédias românticas que focam no público feminino adolescente e jovem adulto) em Super Girl, e outra não tão bem sucedida em usar Drama Policial na série Arrow.
Mas tratando-se de êxito, quase não há dúvida da qualidade das séries do Demolidor e da Jessica Jones produzidos pela Marvel Netflix, e sua inspiração noir.
Diversos elementos clássicos do gênero foram utilizados na construção de narrativa, do visual e fotografia, além das motivações e caracterização dos personagens. Vamos então aos elementos que deram tanto vigor e qualidade a essas séries.
Um protagonista imperfeito
Um advogado cego que a noite caça bandidos que fogem ao sistema de justiça padrão. Matt Murdock passa a série tentando se provar como um dos heróis, mas seus métodos não são exatamente muito admiráveis. Uma visão clássica de anti-herói noir, Demolidor vive a linha da justiça, por conhecer a podridão da cidade e o sistema corrupto que vive, ele tenta trazer justiça a sua maneira para a cidade sem jamais cruzar a última linha entre o bem o mal, o assassinato.
Funcionando como um sensor de mentiras ambulante por causa dos seus poderes. Matt sabe muito bem como diferenciar os mocinhos dos bandidos e pode ver profundamente na natureza humana, o nível de maldade de cada pessoa. Sua atuação na cidade para limpa-la do crime vai desde perseguição a gangues criminosas como investigação de policiais e políticos corruptos.
Em Jessica Jones temos basicamente um clichê do gênero noir, Jones é uma investigadora particular alcóolatra com um passado sombrio. O grande adicional que permite Jones se destacar no gênero é ter justamente uma protagonista mulher ao invés de um detetive fumante de terno de risca de giz e ar galanteador. Pode parecer pouco, mas a oportunidade de uma narradora feminina no arquétipo de investigador no noir permite explorar um elemento narrativo pouco abordado na maioria dos gêneros, violência sexual.
Jones foi submetida a uma tortura psicológica pelo vilão da série e tenta seguir vivendo com essa cicatriz emocional por anos, tornando-a uma pessoa mais fechada e destrutiva que não viverá em paz enquanto não colocar um fechamento nesse assunto. Isso nos leva também a um relacionamento pouco construtivo com Luke Cage, que desmorona quando é mostrada a ligação de Jones com o assassinato de sua esposa.
Ambientação Noir
Ter as duas séries se passando no mesmo ambiente foi sem dúvida favorável para o desenvolvimento de ambas. Não há dúvidas que a região da cozinha do inferno e arredores em Nova York é uma região perigosa dominada por gangues e facções criminosas. Um tipo de ambiente que é propício para o desenvolvimento de uma força policial corrupta e pessoas que estão no máximo fazendo o possível para viver sem exatamente querer ser uma má pessoa.
Seja pela visão do advogado criminal de Murdock ou da Investigadora Particular de Jones, temos acesso as piores imagens da alma humana. Crianças raptadas, polícia corrupta, crimes de colarinho branco. A moralidade ambígua não só dos heróis como de todos os personagens da trama, mesmo os mais secundários, nos ajuda a criar essa imagem de terra sem lei e injustiça.
Esteticamente, a escolha de ângulos não convencionais e tomadas de gravação longas, como a já clássica cena de luta no corredor contra a máfia russa de demolidor, além de cenários em vielas escuras e ambientes de alto contraste e com iluminação em low key (do ponto que só é possível enxergar algumas cenas com todas as luzes do ambiente apagadas) torna-se natural e correspondente com a proposta da narrativa e não se torna em algo forçado.
Ao invés de usar a matriz de cores para tentar empurrar goela abaixo uma seriedade que não corresponde com a história, a caracterização do ambiente nas séries netflix age sutilmente em favor da história e serve para incrementar o visual já correspondente à ambientação sombria da narrativa noir.
Um vilão charmoso e ambíguo
O ponto alto de ambas as séries e um problema que a contraparte do cinema ainda não soube lidar. Fomos apresentados vilões que não representam em si uma força natural de maldade, mas sim pessoas que posam com elegância e se disfarçam naturalmente entre mocinhos, apesar de terem métodos e ambições sádicas e desumanas.
No Rei do Crime temos o clássico vilão de colarinho branco. Wilson Fisk trabalha tanto do lado da lei como fora, lidando com uma empreiteira de sucesso responsável por “revitalizar” o bairro destruído da cozinha de inferno após os acontecimentos de Vingadores. Por trás dos panos, Fisk organiza uma assembleia de criminosos responsável pela distribuição de drogas e prostituição de maneira a diminuir os custos de segurança e compartilhar os lucros.
A imagem de Fisk como um empreendedor que atua dos dois lados da lei entra em contraste direto com o Matt, um advogado independente que busca limpar a cidade de pessoas como Fisk e que também atua dos dois lados da lei.
Killgrave e o gaslighting
Killgrave por outro lado, com seu terno impecável e seu jeito sedutor, tem motivações muito mais egoístas e simples e menos ambiciosas. Seu poder é basicamente ser um chantagista e manipulador implacável e irresistível.
Ao ter um poder tão grande em mãos, Killgrave não se volta para a política, o poder e dinheiro. Ao invés disso ele tenta levar uma vida hedonista egoísta buscando o bel prazer e consequentemente trazendo sofrimento a todos aqueles que estiverem em seu caminho.
Sua ligação com a protagonista não é outra senão o abuso. Com seus poderes de controle emocional e mental, Killgrave mantém Jessica presa psicologicamente, torturando mentalmente e sexualmente. A pior parte dessa experiência de tortura é que a personagem se mantém acordada em seu subconsciente, mas nada pode fazer para impedir esse tipo de abuso.
Não foram poucos blogs feministas que fizeram alusões concretas de Killgrave a relações abusivas, e a fizeram com razão. Ele se reflete em diversos homens que torturaram psicologicamente suas parceiras e abusam e manipulam psicologicamente as pessoas para que façam seus jogos mentais. O Homem púrpura é um vilão humano, horrivelmente humano, que se esconde sobre a imagem de um bom moço.
Várias linhas de narrativa e flashbacks
Outro tema recorrente em narrativas do cinema noir. Durante a série não conhecemos apenas as histórias dos protagonistas. Em Demolidor conhecemos bastante a história de Jack “Batalhador” Murdock e sua tentativa de enfrentar a máfia de apostas no boxe para garantir futuro financeiro para seu filho.
Conhecemos Karen Page que é usada como bode expiatório num esquema maior que ela que a faz cruzar seu caminho com o protagonista, quase um clichê noir.
Até mesmo temos uma olhada íntima no psicológico de Wilson Fisk e sua família problemática, com seu pai alcóolatra e agressor. Quase sempre por meio de flashbacks perfeitamente executados.
Em Jones, além de observarmos diretamente o crescimento de uma adolescente problemática que perde tão jovem seus pais. Também conhecemos de perto a vida de Trish Walker. Ela também se envolve em um relacionamento problemático com Frank Simpson, que lentamente se transforma no vilão Bazuca.
Analogamente, a vida e infância de Killgrave é exposta não por meio de flashbacks, mas literalmente por fitas de vídeo gravada por seus pais.
Além da trama de Luke Cage e sua falecida esposa, que é inevitavelmente arrastado para os dramas da protagonista também. Todos os eventos são teias de acontecimentos que acabam se chocando num parâmetro maior que é o enredo central.
Haverá um futuro Neo noir nas séries Marvel/Netflix?
Ao que tudo indica, ainda será utilizado em Luke Cage, talvez com alguma pitada de blaxploitation, quem sabe? Enquanto a série de Punho de Ferro fica o mistério do que será adaptado… Teremos a temática dos filmes urbanos de kung-fu clássico dos anos 80? Só o tempo nos dirá.
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