Entenda como o filme Uma Cilada para Roger Rabbit aborda o racismo na desapropriação urbana durante a década de 40 nos Estados Unidos.
Racismo e desapropriação urbana em Roger Rabbit
Se passando em Los Angeles de 1947, o filme faz diversas homenagens e referências a coisas famosas do período. Como o cinema noir, a era de ouro dos desenhos animados, clubes de jazz e… racismo e desapropriação de moradias populares. O que, acha exagero? Não acha que um filme desse poderia abordar seriamente esses temas? Bem, claramente você não me segue a muito tempo, mas vamos lá! Como que “Uma Cilada para Roger Rabbit aborda a especulação imobiliária e o racismo dos anos 40.
Primeiro gostaria de dizer que eu realmente adoro esse filme, criado em 1988 (ano em que nasci, por obséquio), “Uma Cilada Para Roger Rabbit” era uma adaptação do livro “Quem Censurou Roger Rabbit” que saiu poucos anos antes do filme. O livro, acreditem, lidava
com temas ainda mais pesados dos que foram tratados no filme. Tratando-se de uma adaptação que seria responsável por unir a propriedade intelectual de estúdios como Universal, Disney e Warner, obviamente não poderiam pegar muito pesado no enredo. Mas claro, essa subtrama passou entre as diversas linhas narrativas do filme..
Vamos a narrativa principal. Bob Hoskins, na pele de Eddie Valiant é um investigador particular contratado pelo executivo de um estúdio de filmagem para tirar fotos expondo a traição de Jessica Rabbit, esposa do astro dos desenhos Roger Rabbit (no livro, um artista de tirinhas). Como um clássico enredo noir geralmente é, o que parecia um trabalho fácil para o investigador se desenrola numa grande rede de intrigas que vai enrolando o personagem ao ponto que o mesmo não pode mais confiar em ninguém.
O enredo sabe bem misturar tramas tristes e sub-enredos pesados em meio a narrativa principal, como a morte do irmão do protagonista por um desenho e a evolução da persona de Jessica Rabit de uma clássica femme fatale a um personagem tridimensional e emocional (Eu não sou má, eu apenas fui desenhada assim). Mas o grande foco desse texto é explorar o sub contexto de racismo americano que confesso, por mim mesmo, passou batido durante anos.
Nesse mundo, os desenhos existem de verdade e convivem naturalmente com os humanos, atuando em animações para fins de entretenimento, mas nunca em trabalhos sérios e de prestígio. Apesar de poder perambular pela cidade comum, eles na verdade moram em toontown, que pode ser traduzido literalmente como “cidade desenho”. Sua localização fica logo após um longo túnel na saída da cidade. Basicamente um bairro segregado.
Okay, se vamos mesmo mergulhar nessa teoria, é necessário explicar um pouco da questão racial nos EUA. Diferente daqui, onde o racismo é meio que cultural, “extra-oficial”, nos EUA durante todo o século XIX e até a década de 60, o racismo era institucional e fortalecido por legislação. Conhecido como “Jim Crow laws” algumas leis permitiam a segregação de instituições privadas sob o argumento de que o governo federal não podia intervir na iniciativa privada.
O sistema legislativo dos EUA dão muito mais poder para os estados do que para o governo federal. Se por um lado é bom por evitar a tirania de um presidente centralizador, é um pouco mais conservador a mudanças sociais estruturais. Muitos estados ainda mantinham algum tipo de legislação racista. Essa segregação separou as cidades por bairros e zonas de brancos e bairros de negros (quase sempre pobres e sem a estrutura do Estado).
Além de toontown, um ótimo exemplo desse tipo de simbolismo está no cabaré, ahm, digo… a casa noturna que Jessica Rabbit se apresenta, nenhum personagem desenho é visto na plateia, apenas servindo drinks e performando no palco. Isso é uma representação para as grandes casas de espetáculos nos Estados Unidos que segregavam negros. Ray Charles era famoso por se envolver em batalhas por justiça social e foi conhecido por se negar a tocar nesse tipo de estabelecimento.
Desenrolando mais o enredo, vemos que, após diversas reviravoltas, o plano central do antagonista (que não a toa, se chama Juiz Doom), foi comprar o sistema de transporte público de Los Angeles, negociar a região de toontown estrategicamente com seu dono e outro interessado no negócio (ambos humanos), e finalmente os assassinar, antes que o atual dono passe por testamento a propriedade de toontown para os desenhos.
Uma vez em posse das terras, Doom planeja negociar com o estado da Califórnia o lugar para que seja construído uma freeway, uma espécie de estrada que liga os bairros afastados com o centro da cidade, semelhante as marginais que temos no Brasil. Para forçar melhor o negócio, Doom planejava desmantelar o transporte de bondes de Los Angeles, mudando a estrutura de transporte da cidade para focar-se em transporte por carros, aumentando a necessidade de vias mais largas para mais carros.
Claro, se você assistiu, sabe que no final Valiant consegue achar o testamento, Toontown agora pertence aos desenhos e o Juiz Doom foi preso pelo assassinato de três pessoas e por negócios ilegais. Porém, na vida real… os vilões são mais poderosos, e conseguiram se dar bem com duas vitórias.
Primeiro, as desapropriações de subúrbios e guetos americanos aconteceu para que fossem construídas as tão sonhadas freeways. A situação é ainda pior aqui mesmo no Brasil, onde milhares de habitações populares foram desapropriadas para a construção de grandes bulevares, como a Avenida Brasil e Avenida Rio Branco no Rio de Janeiro. Colocando milhares de populares nas ruas e aumentando a população de favelas.
Uma cilada para Roger Rabbit soube argumentar sobre temas sociais tão complexos e que ainda são tabu nos EUA até a época de seu lançamento (talvez até hoje, visto a performance de Beyoncè no Super Bowl) em um filme que, como foco principal, fala do encontro de desenhos clássicos de estúdios diferentes.
A segunda vitória da vilania? Convencer Bob Hoskins, um excelente ator, que era possível aceitar o roteiro de uma adaptação de filme com aparência infantil, mas que, trabalhando sério, poderia salvar a produção do filme e até fazer um ponto alto em sua carreira. (E sobre isso, já falei nesse texto aqui).