Havia feito esse rascunho do texto quando assisti o primeiro episódio de Justiceiro pela Netflix e fiquei absolutamente encantado com a premissa da série e o trabalho de elementos dentro da narrativa. Infelizmente a série não atendeu as suas premissas e acabei desanimando de postar. Porém ainda sim, acho que as lições sobre intertextualidades no primeiro episódio são importantes, por isso insisto no texto.
No primeiro episódio temos personagens lendo dois livros diferentes e uma música de encerramento que certamente se relaciona com a narrativa que procuravam desenvolver durante os episódios. Essa ideia de misturar elementos de outras mídias (livros e músicas) dentro de uma narrativa é chamado de intertextualidade. Vamos abordar cada obra em separado:
Moby Dick
Livro clássico da literatura americana escrito por Herman Neville, o livro se trata da obsessão do capitão de um navio baleeiro em capturar uma famosa cachalote branca chamada Moby Dick, que o aleijou numa viagem passada.
A história se passa pela visão de Ismael, um novo marinheiro que se interessa pelo comércio de caça de baleias e acompanha primeiramente encantado e depois perturbado pela obsessão de seu capitão pela monstruosa baleia. Pelo peso clássico do livro na literatura americana, ele é constantemente referenciado em diversas obras narrativas americanas.
Sua alusão nessas obras é para destacar as motivações insaciáveis de uma pessoa por um objetivo que ela não pode alcançar. Geralmente a história de um homem mortal contra uma força da natureza. No caso de Castle pode se levar tanto a ideia de guerra ao crime como o desejo de lidar com o trauma de seu passado.
The Crack-Up
Essa um pouco menos famosa que a anterior, trata de uma coleção de ensaios e recortes proporcionada pelo também escritor americano F. Scott Fitzgerald, e é já no primeiro parágrafo do primeiro ensaio que temos uma pista sensata de como essa obra se relaciona com a história de Frank Castle:
“Claro que toda a vida é um processo de quebra, mas os golpes que fazem o lado dramático do trabalho – os grandes golpes súbitos que vêm, ou parecem vir, de fora – aqueles que você se lembra e culpa as coisas e, em alguns momentos de fraqueza, conta aos seus amigos, não mostram seu efeito de uma só vez. Há outro tipo de golpe que vem de dentro – que você não sente até que seja tarde demais para fazer algo, até você perceber com finalidade que, em algum aspecto, você nunca mais será um homem tão bom novamente. O primeiro tipo de ruptura parece acontecer rápido – o segundo tipo acontece quase sem o seu conhecimento, mas é percebido repentinamente, de fato.
Antes de continuar com essa breve história, deixe-me fazer uma observação geral – o teste de uma inteligência de primeira linha é a capacidade de manter na mente duas ideias opostas ao mesmo tempo e ainda manter la funcional. Alguém deve, por exemplo, ser capaz de ver que as coisas são desesperançosas e, no entanto, estar determinado a fazê-las de qualquer forma. Esta filosofia se ajustou à minha vida adulta precoce, quando vi o improvável, o inverossímil, as vezes o “impossível”, tornado realidade. A vida era algo que você dominava se você fosse bom.
A vida rendia facilmente a inteligência e o esforço, ou a proporção que poderia ser reunida de ambos. Parecia um empreendimento romântico tornar-se um homem literário bem-sucedido – você nunca seria tão famoso como uma estrela de cinema, mas o que você teve provavelmente será mais longo; você nunca teria o poder de um homem de fortes convicções políticas ou religiosas, mas você certamente era mais independente. Claro que, na prática do seu comércio, você estava sempre insatisfeito – mas eu, por exemplo, não teria escolhido nenhum outro.”
Esse trecho dialoga claramente com a tentativa de Castle de lutar contra o trauma que mudou sua vida radicalmente. Sobre a habilidade de manter a mente sã sobre duas ideias opostas (no caso do Justiceiro, declarar guerra ao crime sabendo que o crime nunca deixará de existir) é o passo final que o empurra de volta a seu caminho contra o crime e atendendo ao seu chamado de existência.
Tom Waits – Hell broke luce
A música de Tom Waits que toca no final do primeiro episódio, que pode ser traduzida como algo do tipo “O inferno se rompeu” fala de um veterano militar atormentado por suas atitudes durante a guerra. A vida difícil que ex militares encontram nos EUA após o período de alistamento é frequentemente abordada nas reuniões de veteranos no episódio, e um assunto tabu nos EUA de modo geral.
A música comenta de como a mente de um ex soldado é pra sempre modificada na guerra, mostrando como ele foi afetado literalmente “surdo pela bomba” e como os afeta figurativamente (a guerra me deixou cego). Sendo o background militar algo essencial no desenvolvimento de Castle como personagem, essa música quase ecoa os tormentos que ele carrega no espírito.
Conclusão
A série não conseguiu viver ao seu próprio hype. Por vezes morna e parada, com atenção ao desenvolvimento de histórias interessantes (família do Micro, estamos de olho) além do quase completo abandono do foco principal do personagem, o combate ao crime, temos em Punisher uma série que começa fazendo a lição de casa, dando um início satisfatório e bem construído, para depois se perder em meio ao caminho.