Killmonger está certo? Entenda como os conceitos de isolacionismo e nacionalismo negro construiram esse excelente vilão de Pantera Negra.
Talvez um pouco atrasado, visto que já há algum tempo não posto por aqui. Mas esse contexto do filme vinha morando em minha mente desde quando assisti a estreia de Pantera Negra. Um excelente filme que, entre outras de suas qualidades, nos trás um dos melhores vilões do Universo Cinematográfico Marvel.
Pantera Negra: Isolacionismo e Nacionalismo Negro
Não demorou muito para que os memes de que “Killmonger estava certo” e alguns até audaciosamente acusando que o vilão do filme era de fato o T’Challa.
Talvez por existir alguma falta de bons antagonistas em filmes de super heróis, ou até mesmo em filmes blockbusters no geral nos últimos anos, perdemos a capacidade de diferenciar um vilão com bons motivos e argumentos com um vilão que, oras, está certo.
Com isso pretendo discorrer sobre a mente de Killmonger e suas motivações.
Isolacionismo de Wakanda
Claramente o principal argumento de Killmonger e, para ser até um tanto sincero, a mais óbvia e clara acusação contra seu país de origem. Como pode uma superpotência militar e tecnológica se manter isolada da geopolítica de um mundo cheio de injustiças contra o povo negro. Como pode assistir seus vizinhos serem devastados pelo tráfico negreiro transatlântico da idade moderna, divididos e fatiados entre potências européias pelo neocolonialismo do século XIX e explorados e vendidos por sangrentas ditaduras do século XX e nunca se opor, nunca ir em ajuda a seus vizinhos menos afortunados?
O isolacionismo não é uma novidade ou exceção na forma como se faz geopolítica no mundo. Os Estados Unidos, ainda que não seriam ainda a superpotência construída no século XX, decidiu se isolar dos conflitos militares da Europa (ainda que estendendo sua influência pelo resto da América) e o Reino Unido fez o possível para fazer acordos de paz deixando de se envolver até o último minuto para fazer uma ofensiva contra a Alemanha Nazista, causando a conquista territorial de Hitler por toda a Europa Central. Outros exemplos teríamos ainda o período Sakoku no Japão e nos tempos atuais, países como Coréia do Norte e Butão.
De uma forma simples, o isolacionismo busca a proteção da própria identidade e integridade do país frente a interesses ou conflitos internacionais. Ainda que em casos isolados (piada proposital) possam ter um efeito positivo, geralmente o isolacionismo trás consequências devastadoras para as nações. A falta de ação conjunta da Inglaterra com o resto da Europa contra os avanços nazistas causou um fortalecimento enorme do regime, o atraso tecnológico do Japão que o fizeram um alvo fácil para o neocolonialismo do século XIX e a completa alienação popular de Butão e Coréia do Norte sobre como é a vida fora do regime em que vivem.
Não há dúvidas que Killmonger está correto em criticar o isolacionismo de Wakanda frente às diversas injustiças cometidas por potências européias ao continente africano. Porém é na execução de suas ideias que reside o problema. Mas por enquanto, irei comentar de outra coisa.
Nacionalismo Negro
O principal argumento de Killmonger sobre a obrigatoriedade da proteção de Wakanda sobre toda a comunidade negra no mundo se baseia no conceito de nacionalismo negro, basicamente a ideia de que toda a comunidade negra do mundo compõe um só povo, algo semelhante a ideia do povo judaico, e que por isso, devem ter o poder de autodeterminação da própria comunidade, independente de qual estado estejam vivendo.
Existem dois grandes difusores dessas ideias, uma foram os Panteras Negras famosos pela prática de patrulha armada de cidadãos. Aproveitando-se da liberdade de posse de arma nos Estados Unidos, diversos membros do partido patrulhavam as comunidades negras e pobres americanas para evitar ações de brutalidade policial contra a população negra. Além de diversos serviços sociais como café da manhã grátis para crianças e clínicas de saúde da comunidade.
Talvez o lado menos conhecido dos Panteras Negras seja as motivações ideológicas. Auto identificados como marxistas-leninistas, os Panteras tem um profundo discurso anticapitalista (visto como uma ideologia exclusivamente branca) e reivindicam entre outras coisas a obrigatoriedade do governo da empregabilidade plena, reparação da dívida histórica pela escravidão e claro, a autodeterminação da população negra.
Não muito diferente é a Nação Islã da qual Malcon X fora um famoso membro. Trocando o ateísmo do marxismo-leninismo pelo fundamentalismo muçulmano, a Nação do Islã defende que a população original da humanidade era negra, e que as pessoas brancas são uma raça de demônios devido a sua cultura violenta. Por isso é de extrema importância que exista uma completa separação das duas raças para a preservação do povo negro.
O multiculturalismo africano
O principal empecilho na concepção de um povo negro africano é justamente o quão diverso etnicamente é a África, e como isso trouxe diversos problemas para o continente. Explicado de uma forma resumida por esse excelente vídeo do canal Atlas Pro, podemos ver a relação de clima e cultura (no sentido antropológico do termo, significando costumes e relações sociais) através do continente africano.
Sem dúvida o continente africano é provavelmente o maior em diversidade étnica e tal informação foi fundamental para a desestabilização de impérios, civilizações e tribos africanas durante o neocolonialismo do século XIX, onde grupos étnicos rivais eram postos sobre o mesmo governo nacional e, antigas civilizações eram divididas aos interesses das potências européias.
Ainda sobre esse tipo de informação, uma lista sobre a diversidade étnica africana
https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_ethnic_groups_of_Africa
Uma matéria bem legal do buzzfeed sobre o mesmo tema
https://www.buzzfeed.com/br/alexandreorrico/grupos-etnicos-diversidade-africa
Boas ideias, péssima execução
Voltando ainda ao filme, não é difícil negar que Killmonger tem diversos argumentos convincentes contra o silenciamento de Wakanda frente às injustiças sofridas pela população negra no mundo todo. Tudo faz parte de uma elaborada, eficiente e criativa construção do personagem que, como antagonista, deve atacar tudo o que o protagonista tomava como certo.
Porém, como o diabo está nos detalhes, o problema de Killmonger é a sua resolução do problema. Um financiamento de uma guerra civil em escala global motivada pela cor da pele, baseada nas variações mais radicais das duas instituições apresentadas do nacionalismo negro.
Não sei como posso ilustrar de forma clara como que a sugestão de um conflito armado em escala global baseado na cor da pele (lembrando que a etnia e cultura é uma variante muito mais diversa que a quantidade de melanina no corpo) pode ser uma solução tipicamente vilanesca e desmedida. Isso faz de Killmonger um vilão unidimensional e violento, ainda que por alguns bons motivos? Não, pois o personagem serve a um propósito maior na história do filme.
Como o vilão fez do protagonista uma pessoa melhor
Outra regra de ouro sobre como construir o vilão é fazê-lo de forma que suas ações ou ideias, tornem o herói uma pessoa melhor. Transforme seu arco na história num projeto de melhoria individual ou coletiva e é exatamente o propósito de Killmonger no arco de T’Challa que o vilão executa com tanta primazia.
Originalmente desconexo da situação da população negra ao redor do mundo, alienado por sua posição de realeza num país protegido do resto do mundo, é apenas ao conhecer a experiência de vida de Killmonger e conhecer o quanto as pessoas sofrem ao redor do mundo por diversas injustiças cometidas por diversas instituições que T’Challa decide finalmente abrir o país para o mundo, investindo em causas sociais em comunidades negras fora de Wakanda, e usando seu papel de nação desenvolvida para pregar o desenvolvimento humano e a paz.
Ao ser confrontado pelo isolacionismo que alienou Wakanda dos males do mundo, T’Challa pode finalmente usar a influência de Wakanda para tornar o mundo um lugar melhor.