Discutindo sobre games e arte, hoje analiso diversos jogos pela ótica da narratologia. Será que videogames podem ser considerados arte?
Esse artigo faz parte de uma sequência de artigos sobre o tema. Não é completamente necessário os ler na ordem, mas se o tema te for interessante, esses são os links para os outros artigos.
Parte 1: Narratologia
Parte 2: Ludologia
Parte 3: Desenvolvedoras Indies
Parte 4: Art Games
Games e Arte – Parte 1: Narratologia
Existe um debate acadêmico extenso sobre a possibilidade de videogames serem ou não uma expressão artística contemporânea. Apesar de a grande mídia e mesmo o público comum desconhecer o debate e até mesmo considerar a questão com ironia, como foi o caso da criação do vale cultura que não funciona para adquirir jogos digitas. Existem diversas questões sérias a serem levantadas e até mesmo vertentes conflitantes sobre a experiência estética em jogos digitais.
Nos próximos textos tentarei discorrer brevemente sobre as principais ideias e demonstrar quais jogos podem servir de exemplo de argumentação. Vale lembrar que irei abordar os assuntos em separado por mera comodidade, pois apesar de serem abordagens diferentes, elas se confluem em diversos jogos e em diversos períodos da história dos games. Primeiro irei falar da minha abordagem estética favorita sobre jogos digitais, a narratologia.
Narratologia como ciência
Na virada do século XIX para o XX, a arte narrativa sofreria forte migração das letras e teatro para a imagem, com o desenvolvimento do cinema na escola expressionista alemã (Nosferatu, 1922) e na consolidação do cinema Hollywoodiano (Aurora, 1927) e da popularidade das histórias em quadrinhos durante os anos 20 e 30, fazia-se necessário um novo estudo sobre narrativa que englobasse o papel da imagem e signos, substituindo a crítica literária no papel até então.
Os narratologistas iam de encontro com a Escola de Frankfurt e sua visão pessimista da “cultura de massa”, pois enxergavam nessas novas mídias possibilidades reais de experiência estética narrativa e não como “decadência” das artes clássicas. Esse mesmo espírito contestador serviria para afirmar a potência estética de uma futura mídia que é o objetivo desse texto, os jogos digitais.
Narratologia nos games
Como nos primeiros anos de desenvolvimento de jogos digitais a tecnologia ainda estava em desenvolvimento, a narrativa era quase descartável, assim como aconteceu com o cinema em suas origens. O estudo narratológico de games tende a ignorar os primeiros anos da indústria (motivando suas principais críticas). Porém a primeira experiência de narrativa na indústria foram os Adventures Texts (aventuras de texto).
Evoluindo da já existente mídia de hipertexto e da ficção interativa, visto tanto em livros como quadrinhos, nas mídias digitais surgia uma possibilidade totalmente nova de interação do jogador com a história. Esse estilo de jogo se baseia em um personagem que é comandado via de texto a fazer ações que influenciam no decorrer da história. No começo dos anos 70, pela dificuldade em representar gráficos elaborados nas máquinas da época, os primeiros jogos consistiam apenas em textos.
Com a melhora da tecnologia nos anos 80 e 90 foi possível usar algumas imagens para melhor retratar o cenário, o estilo evoluiu para o “graphic adventure” (aventuras gráficas) onde o personagem principal podia ser controlado por um cursor, geralmente representado pelo mouse do computador. (O estilo de aventuras de texto, porém se manteve vivo e até hoje conta com exemplares). As imagens também ajudavam a aumentar a densidade e a experiência do jogador com a narrativa.
O representante mais conhecido do estilo e que acabou batizando o gênero foi Colossal Cave Adventure, ou conhecido simplesmente como Adventure. Apesar de não ser um RPG, o jogo têm grandes influencias do mundo fantástico criado por Tolkien, como elfos, trolls e dwarfs aparecendo no jogo.
Aliás os jogos de RPG também fizeram bom uso da narrativa para entregar uma boa experiência ao jogador. Evoluindo dos role-playing games de mesa, onde cada participante tomava parte de uma personalidade e construía uma narrativa própria durante o decorrer do jogo. Pelos limites tecnológicos a liberdade criativa dos jogadores era bem restrita, porém já no final dos anos 80 com a criação das sagas Final Fantasy e Phantasy Star, uma grande melhoria gráfica foi feita para melhor visualização dos personagens, lugares e monstros.
A era de ouro da Narrativa
Com o aumento da capacidade gráfica nos computadores e da popularização dos jogos de RPG nos consoles caseiros pudemos observar grandes obras dos jogos eletrônicos que valorizavam a narrativa, em especial as graphic adventures com seus enredos intricados e reviravoltas incríveis, e nenhuma outra empresa reinou nesse estilo como a Lucasart.
Feita para ser a divisão de jogos eletrônicos da empresa Lucasfilm, a Lucasart desenvolveria a ScummVm, uma fusão de engine e linguagem de script que seria a base para muitos jogos adventures dos anos 90. Entre eles os mais famosos seriam os jogos. The Dig, baseado em um episódio da série “Amazing Stories” de Steven Spielberg. Maniac Mansion e Day of The Tentacle, jogos baseados em trabalho em equipe e viagem no tempo. Trilogia Monkey Island, um jogo sobre piratas e exploração e I Have no Mouth and I Must Scream, baseado num conto de horror futurista que apesar de não ser da Lucasart, usou a base do ScummVM. Todos os jogos focavam na narrativa e davam o mínimo de interação do jogador com o personagem.
Pelos jogos conterem muita informação, diálogos e possibilidades de desenvolvimento do enredo, era necessário muito espaço de disco para armazená-los. Por isso os graphic adventures eram mais comuns em consoles com capacidade de ler CDs. (Lembrando porém que o primeiro jogo da saga Clock Tower saiu para SNES).
Hoje famoso por dirigir a saga Metal Gear, Hideo Kojima que no começo de carreira escrevia contos para jornais japoneses e sonhava em ser diretor de filmes, tentou a sorte no mercado de design de games e levou consigo sua habilidade de construir narrativas bem estruturadas. largamente influenciado pelo adventure “The Portopia Serial Murder Case” Kojima foi o criador da saga Metal Gear e do estilo “stealth” de jogos de aventura além de produzir dois graphics adventures para o MSX II, Snatcher e Policenauts, que mais tarde foram portados para Sega CD , Playstation e Sega Saturn.
Snatcher conta a história de um futuro distópico onde seres metade máquinas metade homens matam seres humanos e tomam seu lugar nas suas vidas sociais. O governo para acabar com essa ameaça cria a agência JUNKERS, responsável para caçar e matar os Snatchers. O jogo teve forte influencia dos filmes: Exterminador do Futuro e Blade Runner. Para Sega CD também temos “Rise of The Dragon” e um port de Adventure Island.
Narratologia nos dias de hoje
Com o desenrolar dos anos 90 e durante a década seguinte, o mercado de jogos de ação dominou bastante o mercado e a narrativa foi encarada como um uso secundário do gameplay. Porém no Japão, a indústria de text e graphic adventures seguiu muito forte, principalmente nos consoles portáteis como Nintendo 3Ds e PSP. Jogos com narrativa interativa ficaram mais raros no ocidente, porém alguns grandes exemplos sobreviveram ao tempo.
Devido à fusão com outros estilos que pretendo descrever futuramente, deixarei jogos com narrativas densas e interativas como Stanley Parable, Last of US, Shadow Of Colossus, Jorney, etc. para outra ocasião, quando melhor descrever essas novas variáveis de potencias estéticas em jogos digitais.
Muitos jogos focados na construção da narrativa geralmente usam de puzzles para reforçar a jogabilidade e interação do jogador-jogo. Talvez o exemplo mais famoso seria a série Portal, que apesar de usar um gameplay típico de jogos de ação, não conta com enfrentamento direto e entrega uma ótima narrativa com complexos puzzles para resolver. Outro jogo interessante é o episódio Shattered Memories, da série Silent Hill. Se afastando do padrão “ação-aventura” da série, Shattered Memories não conta com um sistema de batalha, apenas de fuga, e tem foco nos puzzles para o desenrolar da história. O jogo ainda inova em transformar a narrativa e ambiente conforme o comportamento psicológico do jogador.
Um jogo que recentemente me surpreendeu em entregar uma narrativa interativa de qualidade sem precisar emprestar recursos de gameplay de outros gêneros foi “Life Is Strange”, lançado em capítulos durante esse ano de 2015.
Max Caulfield é uma estudante comum porém um pouco tímida do norte oeste dos Estados Unidos. Após um tempo morando em Seatle, Max volta para sua cidade natal para estudar fotografia, tendo de lidar com sua nova vida de volta a cidade pequena. Porém após um evento assustador na escola, Max percebe que ganhou o poder de voltar no tempo e mudar os pequenos eventos ao seu redor. Cabe a Max a responsabilidade de intervir ou não na sua vida e das pessoas ao seu redor, sem saber exato quais serão as consequências.
Apesar de retratar uma jovem adolescente suburbana nos EUA, o jogo trata de assuntos polêmicos como bullying, vídeos íntimos viralizados, drogas, sexualidade, controle de porte de armas e mortes na adolescência. Porém de uma maneira séria e aberta, sendo um ótimo material para trabalhar esses assuntos com jovens de uma maneira mais dinâmica e menos autoritária. O trabalho de voz e dublagem no jogo é excelente e a trilha sonora é composta por bandas indies licenciadas de grande qualidade, fazendo também um grande diferencial no jogo.
Pois bem, a narratologia é um meio de analisar a potência estética dos jogos, o que você acha, que um jogo é mais artístico que outro por sua narrativa? Deixe seu comentário.
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Parte 1: Narratologia
Parte 2: Ludologia
Parte 3: Desenvolvedoras Indies
Parte 4: Art Games