Início Literatura Análises Lovecraft entre o conservadorismo, ceticismo e o indescritível

Lovecraft entre o conservadorismo, ceticismo e o indescritível

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Compreendendo a obra de Lovecraft

Um dos autores mais consagrados do gênero horror que soube utilizar muito bem recursos da fantasia, ficção científica e até mitologia para a constituição de suas histórias. Por meio de sua obra, Lovecraft mostra um olhar peculiar ao gênero horror e sabe como extraí-lo de forma única por meio da literatura.

Nesse artigo, analisarei três aspectos de sua literatura de forma a compreender como funciona sua estrutura narrativa e, nessa vivissecção de sua obra ainda tão atual e descaradamente copiada, entendermos como funciona a mente de tão escuso escritor.

O horror descrito pelo próprio mestre

“A emoção mais antiga e mais forte na humanidade é o medo, e o tipo de medo mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido”

É com essa frase que Lovecraft inicia seu livro “O Horror Sobrenatural em Literatura”, o seu livro mais conhecido de não-ficção onde descreve detalhadamente de próprio punho, sua visão estética e histórica do medo sobrenatural na história da literatura.

Essa frase, que é citada nos mais extensos trabalhos acadêmicos (inclusive no meu artigo de conclusão de curso chamado “Videogames e arte: potências estéticas em narrativas do gênero horror”), é fundamental para compreender não só o horror como gênero das mais diversas mídias narrativas, mas qual era a visão Lovecraft sob o horror e, acima de tudo, o que essa leitura tinha a dizer sobre ele mesmo.

Conservadorismo na obra de Lovecraft

Não é segredo para o mais tímido pesquisador da vida pessoal do escritor de que ele fora profundamente conservador em vida. Beirando aos limites da xenofobia até mesmo para os padrões da época. Após se casar foi morar em Nova York num momento de profunda agitação e imigração, e via com o pior dos olhares a grande massa imigrante que lentamente tomava conta da cidade.

De uma visão bem superficial, pode se dizer que o conservadorismo se baseia num constante medo ao novo e principalmente, pelo medo ao desconhecido. Lovecraft, ao ver uma turba imigrante tomando conta das ruas de Nova York e lentamente mudando a realidade social do lugar, temia pelo fim de um tempo que certamente, nunca retornaria. E esse sentimento transparece em suas obras.

A questão imigrante

Em “A sombra de Innsmouth”, a história se desenvolve em torno de um jovem que, movido a curiosidade, faz uma visita a uma cidade que lentamente perdeu sua cultura colonial clássica para uma cultura nova estrangeira. Causando completa decadência na cidade, agora evitada pelos seus vizinhos que sentem pavor de seus habitantes.

O caso é ainda mais curioso na noveleta “Um Sussurro nas Trevas” (a propósito, que nome incrível para uma história). Onde vemos uma lenta dominação de um personagem pelos antagonistas (invasores cósmicos). Fazendo uma amorosa defesa da miscigenação da cultura humana com a alienígena (“alien” é como são chamados os imigrantes ilegais nos EUA). Falando das vastas vantagens da assimilação por eles, que na realidade é uma completa subjugação humana.

Um leitor partidário do progressismo pode sentir algum desconforto com certos temas. Porém é necessário um certo distanciamento do caráter ficcional da obra com o mundo real. Na realidade política, o debate sobre imigração e miscigenação ainda é vastamente explorado e discutido. No mundo de Lovecraft porém, essa assimilação é certamente nociva a humanidade, e é nesse pensamento macabro e em sua inevitabilidade que reside o verdadeiro horror da questão.

Ceticismo na obra de Lovecraft

Um acadêmico passa a estudar com curiosidade algum artefato folclórico com o devido distanciamento científico. Porém com o tempo, acaba se envolvendo mais no estudo e acaba por perceber que tudo o que tomava por descrédito e ceticismo, torna-se real e acaba levando o narrador a um estado pleno de horror.

De certa forma, essa descrição se encaixa na maioria das histórias de Lovecraft. Quase todos seus protagonistas são homens da ciência. Letrados, que acabam tropeçando sobre algum fato curioso. Uma escultura, um relato insólito… O ar ceticista do protagonista, que narra tudo com meticulosa atenção, acaba envolvido em algo muito maior que si e esse conhecimento acaba o afetando de modo irreversível.

É sabido que Lovecraft era ateu. E sua descrença transparecia seu ceticismo em suas histórias. Ele via o universo não como uma obra de um Deus bondoso que tudo provê a humanidade. Mas sim um evento caótico e frio onde o ser humano é apenas mais um elemento perdido em meio a uma grande sequências de eventos, totalmente indiferentes a ele.

Esse sentimento de horror a uma força além do entendimento humano é chamado de “medo cósmico”. Suas divindades, muito aquém do que geralmente é descrito nas mais diversas religiões, são manifestações físicas deste universo tão assustador. Para Lovecraft, não há um Deus olhando por nós.

O ser humano é destinado a morrer sozinho num universo completamente indiferente a ele. E esse medo ao desconhecido (de novo, a frase que abre esse artigo) é o grande motor de todas as histórias de Lovecraft.

Descrevendo o indescritível

Para nós, millennials afogados na cultura da mídia digital pós moderna. É muito mais provável que tenhamos conhecido Cthulhu por alguma das inúmeras ilustrações feitas por inúmeros artistas ao redor do mundo. Um grande corpo escamoso com tentáculos na boca e um par desajeitados de asas em suas costas desproporcionais a seu corpo.

Mas, quem se prestou a ler algum conto do autor que fale sobre o monstro, sabe que o principal aspecto de Cthulhu é que ele não pode ser desenhado. Seu próprio nome não pode ser escrito, sendo Cthulhu uma vaga tentativa de aproximação de seu profano nome. E a mera observação de sua forma em vida, levaria o ser humano a loucura.

Não só ele, mas todos os monstros de Lovecraft tem descrições vagas que buscam fazer assimilações com alguns elementos conhecidos pelo leitor, mas que não fazem sentido biológico em sua constituição.

Lovecraft é um autor que busca extrair o melhor da literatura como mídia. As palavras têm um poder de sugestão muito superiores às imagens. Talvez por isso que adaptações das obras de Lovecraft a outras mídias sejam tão difíceis de serem executadas. Aquilo que é completamente estranho ao nossos olhos (um medo ao desconhecido, se preferir) é o verdadeira raiz do medo, e ao mostrar o monstro, todo seu horror é diluído.

Conclusão

Lovecraft revolucionou o gênero horror em suas obras. Sua influência é sentida em praticamente todas as mídias narrativas da atualidade. Caso esse artigo tenha despertado uma curiosidade sobre suas histórias, estou postando aqui um link direto para o “Lelivros” com a antologia completa do autor:
http://lelivros.love/book/download-antologia-h-p-lovecraft-h-p-lovecraft-em-epub-mobi-e-pdf/

Caso queira saber mais da vida pessoal do autor, recomendo esse ótimo documentário. Ele contém participações de Neil Gaiman, John Carpenter e Guillermo del Toro. Infelizmente sem legendas em português.

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