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Frankenstein e o existencialismo

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Frankenstein e o existencialismo

Frankenstein e o existencialismo… Por que existimos e qual o propósito de nossa existência no mundo? Essa é uma questão filosófica que fundamenta a escola existencialista. Apesar de ganhar grande destaque na filosofia francesa do século XX com Sartre e Camus, seus principais pontos foram levantados anteriormente no século XIX por Nietzsche, Schopenhauer e Kierkeegard.

Porém, na novela gótica “Frankenstein” de Mary Shelley, vemos a ansiedade existencial sendo abordada quase meio século antes por uma garota de dezenove anos em uma disputa literária de férias.

Conheça um pouco mais sobre essa obra.

A construção de um clássico

Mary Shelley é filha da escritora feminista Mary Wollstonecraft, do escritor político e um dos fundadores do anarquismo Willian Godwin e fora casada com o poeta inglês Percy Shelley (que baita família Mary teve, diga-se de passagem). Talvez poderíamos dizer que ela não tem nenhuma obra de grande sucesso, com exceção da obra definitiva do terror e primeiro livro sobre ficção científica da história. Frankenstein, ou o prometeu moderno.

Com uma abordagem diferente das retratadas nos filmes, o livro conta a história do doutor Frankenstein. Um jovem cientista obcecado com conceitos sobre vida e morte que decide criar um corpo humano. Usando diversas partes humanas e de animais costuradas em uma nova criatura e reanimá-la com uma descarga elétrica.

Mary diz que teve inspiração para essa história ao tomar conhecimento dos experimentos de Luigi Galvani, anatomista italiano que fazia experiências com mortos e suas reações à eletricidade.

Ao confrontar a sua criatura (que não tem nome) agora viva, o doutor a contempla horrorizado e foge em desespero. Retornando posteriormente depois que a criatura já havia fugido. Após um tempo a criatura o reencontra e o doutor descobre não só que ela possui consciência própria, mas que sofre com ansiedade existencial ao não saber seu propósito no mundo. Por isso buscou seu criador para obter tais respostas. O desenrolar da história eu deixarei para a curiosidade dos possíveis leitores desse grande clássico.

Mary Shelley construiu em sua história um fino traço do que mais tarde seria desenvolvido no existencialismo. Se não somos uma criação de um ser perfeito, qual o nosso papel na existência? A autora não só questiona o papel do homem em usar a ciência como se fosse um deus, mas sim na consequência existencial da criatura, que vem ao mundo sem nenhum propósito.

As influências de Frankenstein no existencialismo e Ficção Científica

Sendo assim, toda a obra que futuramente questionou os limites da ação humana sobre a ciência teve como ponto de partida a história de Mary Shelley. Não à toa, a obra é considerada o marco inicial da ficção científica, que só tomaria forma um século depois.

Ao mostrar um cientista que não tem medo de explorar o inexplorado e ainda sim, ficar horrorizado com suas descobertas, levando a um descontentamento profundo. Um pouco sobre esse tema eu já comentei no meu texto comparando os jogos Parasite Eve e Resident Evil com Frankenstein.

A ideia de se confrontar com seu papel na existência foi abordada por diversos pensadores e cada um tem uma resposta diferente. Kierkegaard reconhece a falta de sentido da vida e completa que apenas o “salto de fé” proporcionado pela convicção cristã trará alguma paz de espírito a pessoa. Albert Camus por outro lado diz que, em frente a falta de sentido da existência, deve-se abraçar o absurdo como inevitável e procurar tirar o melhor da vida.

Por fim temos Nietzsche que definia a vida como uma eterna experiência de transvaloração da moral construída pelo indivíduo, sempre negando bases tradicionais para alcançar o aspecto de além-homem. Evitando de maneira geral que não se caia em ressentimento, e é exatamente esse o problema que a criatura enfrenta no livro.

Ao falhar em dar sentido a própria vida e dar motivo próprio a sua existência, o monstro procura seu criador e ressente-se por perceber que não só seu criador não tinha resposta para suas perguntas, mas que também não iria ajudar na busca de ressignificação de sua existência. Fazendo com que o monstro o persiga e destrua sua vida.

Adaptações para o cinema

O existencialismo em Frankenstein é completamente abandonado nas adaptações do cinema. A primeira adaptação para o cinema foi em 1910, criado pela indústria de Thomas Edison e, como os outros filmes do período, tem uma curta duração de poucos minutos. Por isso segue pontos importantes da narrativa de forma apressada e sem muita profundidade.

Porém ainda sim é feito um trabalho interessante na forma de como é contada a história, levando em consideração as limitações técnicas do período. Uma notável diferença narrativa é na criação do corpo do monstro que, ao invés de eletricidade, usa uma sopa vital com um único cadáver. A própria cena inclusive, mostra uma técnica cinematográfica inovadora para o período, na hora de retratar a transformação lenta e assustadora do corpo.

O filme também é famoso por usar uma rústica tentativa de adicionar cores por filtros sépia na projeção preto e branco. A técnica era usada para realçar as mudanças emocionais em cada parte da narrativa. Com cores mais calmas para momentos tranquilos e tons mais fortes para momentos de tensão. O filme caiu em domínio público e está disponível no youtube.

Frankenstein de 1931

Seria a adaptação de 1931 que traria realmente sucesso para o personagem, sendo a imagem geralmente associada com o nome Frankenstein. Dirigido por James Whale e atuado pelo até então pouco conhecido Boris Karloff. Frankenstein se tornaria um dos muitos personagens a estrelar a galeria de monstros do estúdio Universal (como Drácula, A Múmia, o Homem Invisível entre outros).

As diferenças mais claras na narrativa são em demonstrar a excentricidade exagerada do Doutor Frankenstein, que fundamentaria o estereótipo de cientista louco no cinema. Ele agora tinha um ajudante corcunda e dessa vez ficava orgulhoso de sua criação, e não espantado ou temeroso.

Apesar de ainda lidar com os temas sobre o limite entre a vida e a morte e o homem imitando o papel de deus. O monstro não mais é um ser consciente que sofre de ansiedade existencial, mas sim age como um animal, sem poder de fala ou sinal claro de entendimento. Empurrando o questionamento para outra direção.

Eugenismo Lombrosiano na adaptação cinematográfica

Também tomando um rumo diferente do livro, o filme mostra o ajudante do doutor (que não se chama Ygor) buscando um cérebro para integrar o corpo do monstro. Este ao se atrapalhar acaba usando um cérebro que era de um criminoso, influenciando numa futura propensão a maldade que o monstro iria ter.

Ao contrário do monstro de Shelly, que se aproxima muito mais do conceito de tábula rasa proposto por filósofos ingleses empiristas como John Locke. O filme toma o conceito de inatismo biológico proposto por Cesare Lombroso, higienista italiano que morreu em 1909 (22 anos antes do lançamento do filme).

Lombroso defendia que, pela constituição biológica, pessoas são mais propensas a cometerem crimes, podendo até ser traçado um perfil criminoso pelas medidas do crânio. Hoje, as teorias racistas de Lombroso caíram em descrédito. Mas no período do filme ainda tinham alguma credibilidade. Basta pensar que teorias higienistas foram usadas anos depois na Alemanha nazista e na criação de leis racistas no sul dos Estados Unidos.

Conclusão

Seja no questionamento da ansiedade e falta de respostas do motivo de estar vivo, seja na adaptação de mais sucesso que busca uma resposta para o comportamento violento da criatura.

Frankenstein é mais uma obra que circula sobre as questões existenciais entre a vida e a morte do que uma história assustadora sobre um monstro violento capaz de tomar atos cruéis. O questionamento da maldade de Frankenstein nada mais é do que um questionamento sobre a própria natureza humana.

 

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