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Por que é tão difícil adaptar jogos para o cinema?

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Por que é tão difícil adaptar jogos para o cinema?

Por que é tão difícil adaptar jogos para o cinema? O que explica a existência de tantos filmes ruins que são adaptações de jogos de videogames clássicos, as vezes com histórias tão ricas e interessantes?

É essa pergunta que pretendo responder neste artigo.

Adaptações, uma problemática em si

Toda adaptação entre mídias está sujeita a perda de qualidade ao material original, mas parece que os jogos sofrem excepcionalmente com o caso.

Existe um sem números de filmes horríveis e praticamente inassistíveis (talvez para uma seção de brincadeira entre amigos), e os melhores exemplos são filmes razoavelmente aceitáveis, mas longe de serem um filme de qualidade.

Qual o mistério então nessas adaptações? Quais elementos que sempre escorregam pelas mãos dos executivos e impossibilitam uma adaptação de qualidade? Tentei enumerar algumas opções aqui.

Diferença das mídias

O grande elefante na sala é a diferença notável nas mídias em contraste com o que elas têm em comum.

Claro que ambas as mídias tratam de sonoplastia (trilha e efeitos sonoros), narrativa (a história a ser contada), representação (atuação dos atores, dublagem e caracterização dos personagens) e fotografia (enquadramento da cena) de maneira parecida.

Porém o cinema atual não se equipara com o nível de interatividade dos jogos digitais.

Interatividade é basicamente o que define o jogo como mídia, sua relevância como expressão, de ter uma meta a ser cumprida, um “jogo a ser ganho” não pode ser adaptado para a telona.

Jogabilidade, o essencial dos videogames

Como já disse no artigo “Games e Arte: Ludologia”, as vezes esse aspecto é a peça fundamental do jogo e se ele for cortado, boa parte de sua essência é quebrada.

Um exemplo é o caso do jogo Super Mario Bros que, apesar de ter um enredo no jogo, ele serve como pano de fundo para um jogo totalmente interativo.

E mesmo os jogos que são definidos mais pelas suas narrativas (falei deles em Games e Arte: Narratologia) contam com algum nível de interatividade. Ao retirar esse poder do espectador de alterar o rumo da história, toda a estrutura narrativa perde sua força.

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Houve acertos?

Não consigo dar exemplos de filmes que conseguiram adaptar a interatividade dos jogos, mas tratando de adaptar a sonoplastia e fotografia, o filme “Terror em Silent Hill” se destaca (talvez sendo a única coisa que rende no filme). Foi utilizando músicas diretamente dos jogos, criados pelo gênio Akira Yamaoka e sendo o ponto alto da série, a ambientação e fotografia conseguiram ser fielmente mantidos.

As cenas de transição de ponto de vista de terceira pessoa no filme Doom para uma visão de primeira pessoa, como é no jogo, também foi largamente elogiando por fãs da série. Alguns exigindo que maior parte do filme se passasse nesse tipo de perspectiva, mostrando o valor da fotografia na adaptação.

Desconhecimento da essência

Jogos digitais como mídia, tem o que é singular a qualquer obra artística, uma essência que se apresenta sutilmente entre o aspecto geral da obra.

Silent Hill 2, por exemplo, é mais uma história sobre purgação e catarse de dramas pessoais do que uma narrativa sobre um homem em busca de sua esposa morta.

Parasite Eve trata mais sobre o enfrentamento de demônios internos e a resistência do determinismo frente a liberdade radical individual do que um sci-fi sobre parasitas sencientes.

 

Essa falta de sensibilidade artística no diretor pode fadar um projeto ao fracasso antes mesmo de ele iniciar. Acho que o melhor exemplo de falha completa nisso foi no já citado “Terror em Silent Hill”, enquanto som, fotografia e efeitos estavam fantásticos e estonteantes na adaptação, a essência dos jogos Silent Hill 1 e 2 (que são inteiramente diferentes) foi completamente dispersada.

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Ele não deveria estar aqui, e você sabe disso.

Ao fundir a história e antagonistas dos dois jogos e transformar numa história sobre uma mãe em busca da filha, transforma a potência estética do Silent Hill original em um enredo genérico de filme de terror com ótimos efeitos. Eu poderia falar também da franquia Resident Evil, mas deixarei para o próximo tópico.

Houve acertos?

Ironicamente, as obras que aspiravam menos esteticamente foram as que tiveram sua essência mais respeitada. Mortal Kombat que é literalmente um torneio mortal interdimensional conseguiu passar bem a ideia para as telonas. A ideia de como a vida é esvaziada de sentido e a morte é um resultado provável do torneio é mostrada claramente em diversas batalhas como a de Subzero contra um monge que morre congelado.

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Ou de como Sonia, uma agente especial americana, assassina Kano a sangue frio com uma chave de coxa. A narrativa é completamente lunática e aleatória e dada por explicações frias de um narrador não participante, porém é exatamente como feito no jogo.

Desrespeito ao material fonte

Essa vai ser dose…

Alguns produtores simplesmente não se importam com o material fonte. Eles sentem que, na necessidade de adapta-lo a outra mídia, ele pode ser simplesmente deformado e mutilado ao bel prazer dos executivos e diretor.

Como pode ser sensato a mudança da ambientação medieval-fantástica do reino do cogumelo em Mario Bros, por uma cidade pós-apocalíptica cyberpunk?

Personagens chave como a Princesa Peach ser trocada por Daisy, uma personagem secundária de um spin off no Game Boy. Nem quero comentar os personagens Toad, Bowser e Yoshi.

Tudo em Super Mario Bros é um completo fracasso nesse quesito, com exceção dos poucos minutos em que os protagonistas vestem o macacão com as cores que usam no jogo.

E a série Resident Evil… o que dizer…

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Sim, Nemesis está chorando nessa cena, e eu também.
 

Enredos simples e sóbrios com desdobramentos complicados, esse poderia ser o resumo do enredo dos três primeiros jogos da franquia. Personagens cativantes, humanizados e de fácil identificação.

Tudo isso é completamente rabiscado. Nos colocam em um tornado de conspirações e experimentos cheios de buracos de enredo. Com personagens que não conhecemos, com habilidades que não tem nenhuma relação com os jogos originais e que não nos trás nenhum nível de identificação.

Quando personagens da franquia aparecem na tela, tem suas personalidades e motivações mutiladas ficando quase irreconhecíveis a não ser por sua aparência.

Enquanto o vilão principal da primeira edição do jogo era um trabalho interno de um traidor em nome da empresa vilã, no primeiro filme é uma inteligência artificial senciente e ultra tecnológica.

Houve acertos?

Saber usar o material original funciona como um tripé junto com o conhecimento da essência e a adaptação midiática. Se usado sem esses dois outros pés, acaba assassinando a obra e perdendo todo o interesse que ela poderia alcançar.

Obras como “Hitman” e “Lara Croft” conseguiram adaptar com alguma fidelidade o material original, principalmente no visual, mas falham em ser interessante por não terem sequer uma essência, sendo apenas um filme de aventura genérico.

Street Fighter II adapta seus personagens com certa banalidade, mas poderia estar ao lado de Mortal Kombat se não tivessem tirado a atenção do verdadeiro protagonista e suas motivações. Ryu, com sua busca para ser o maior lutador de artes marciais, deveria ser o foco. Todo o idealismo militar americano na figura de Guille (no filme, adaptado pelo belga Jean-Claude Van Damme) cabe a um personagem secundário.

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Ironicamente, adaptações animadas conseguem ser melhores nesse quesito. Street Fighter II: The Animated Movie, Sonic the Hedgehog: The Movie e Resident Evil: Degeneração dão um baile em suas contrapartes em live action (comparando Sonic no caso, com o filme do Mario).

Desonestidade e ganância

Nesse assunto, um nome alemão ressoa sobre essas linhas de texto e trazem tristeza e ódio nos corações daqueles que o conhecem.

Uwe Boll é basicamente um amador na indústria cinematográfica que praticamente declarou sua motivação pessoal de enfileirar os piores filmes da história sobre seu comando. Foram vítimas de suas adaptações catastróficas jogos como Far Cry, BloodRayne, House of Dead e Alone in The Dark.

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Essa é a opinião de Boll

Boll se aproveita do financiamento estatal e das diversas isenções de impostos da Alemanha em obras cinematográficas. Com o governo bancando metade do projeto, ele podia investir em produtos licenciados para alcançar uma margem mínima de lucro. Sustentando assim seu processo para a criação de um futuro projeto se baseando no mesmo esquema sórdido.

Aparentemente o governo alemão suspendeu esse conjunto de isenções e estímulos estatais justamente porque cineastas como Boll se aproveitavam da situação e não traziam retorno esperado no projeto.

Uwe Boll ainda tem uma atitude completamente violenta com seus críticos. Ofendendo-os publicamente e, por ser campeão aposentado de boxe regional, frequentemente os chamava para uma disputa no ringue, o que definitivamente me traz certo arrependimento em ter parado de praticar boxe quando era adolescente, caso ele veja esse texto.

O caso Mario

E, perdão por tocar no ídolo inatingível de muitos que podem estar lendo esse texto. Mas a Nintendo fez questão de tratar o filme Super Mario Bros como uma linha de publicidade para a série de jogos.

Não tendo o menor interesse pelo desenvolvimento da obra, cortando os gastos com o filme e praticamente entregando ele do jeito que for.

O descaso da produção foi tanto que a dupla principal de atores, o já famoso Bob Hoskins (Uma Cilada Para Roger Rabbit) e o estreante John Leguizano (Era do Gelo) frequentemente se embriagavam durante as filmagens e chegaram a gravar algumas cenas bêbados.

É possível lucrar com a arte?

Ninguém aqui é bobo, sei muito bem que a indústria de entretenimento na sociedade capitalista está inserida na lógica de mercado e por isso, busca retorno financeiro. E sinceramente não há nada de muito de errado nisso.

A função do produtor é investir capital num projeto que pareça produtivo e que possa retornar lucro exponencial. Buscando atingir na maioria das vezes o publico médio comum ao invés de agradar públicos de nichos (como o público gamer até os anos 90).

 

Narrativas universais em jogos digitais

Acontece de muitas dessas histórias adaptadas possuem uma essência estética quase universal. A ideia de auto penitência e sofrimento em Silent Hill 2 é um conflito visto em diversas culturas e uma grande margem da população consumidora pode se identificar, não só os fãs de horror (que são por si só um publico já bastante vasto).

A ideia de auto sacrifício e a ambientação fantástica que nos é apresentada em Shadow of Colossus pode ser adaptada para as telas como um épico de estilo semelhante a franquia arrebatadora de bilheterias “Senhor dos Anéis”.

God of War é um drama grego pós-moderno a espera de uma adaptação fidedigna a seu material e essência a ser feita.

Basta um empreendedor com capital seguro e uma certa audácia em criar um material que realmente se destaque do produto médio. Para que ele alcance enfim uma grande fatia do mercado, e não que funcione como uma linha alternativa de publicidade.

Um mercado em vício

Não é a coincidência que o maior responsável por adaptações medíocres se baseava em isenções e investimentos estatais para obter um retorno garantido a sua obra, por pior que elas sejam.

Precisamos de executivos que tenham sensibilidade artística e dispostos a competir de fato no mercado internacional e bilionário de produção cinematográfica. E nos dar um produto final que realmente se destaque.

Enquanto isso, produtores independentes poderiam investir em pequenos fan-films e buscarem financiamento coletivo em sites como crownfunding e catarse. Assim como foi feito com as adaptações de Justiceiro – Dirty Laundry e o curta baseado em Five Nights at Freddys…

Esse crítico que vos escreve com certeza agradeceria tal ação.

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